A menos de 15 dias do fim do governo de Jair Bolsonaro (PL), a Controladoria-Geral da União (CGU) produziu dois pareceres sobre um pedido de acesso ao cartão de vacinação do presidente da República. As minutas apontam para direções contrárias: uma nega o pedido; a outra, concede. O procedimento nunca foi adotado na CGU e ocorre em meio a disputas internas pelo preenchimento de cargos de comando no novo governo.

A decisão sobre atender ou não o pedido apresentado por uma cidadã é da Ouvidoria-Geral da CGU. O setor é o ponto nevrálgico no processamento dos pedidos de informação apresentados ao governo federal. Tem o poder de determinar a entrega de documentos quando o ministério a quem o pedido foi direcionado não quer liberar. O pedido de acesso ao cartão de vacinação de Bolsonaro foi apresentado à Secretaria-Geral da Presidência da República, que negou a demanda, alegando que se tratava de uma informação pessoal.

Em 2021, caso semelhante chegou à CGU e foi negado com imposição de sigilo de 100 anos sob o argumento de que a Lei de Acesso à Informação (LAI) garante a proteção a dados relativos à vida privada. Jair Bolsonaro passou a pandemia de covid-19 colocando em dúvida a eficácia das vacinas.

Após o pedido de acesso ao cartão de vacina do presidente ser negado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, a autora do requerimento recorreu à CGU. Segundo a LAI, a Controladoria é a instância de apelação. Desde o dia 15 de setembro, a cidadã vinha insistindo que a informação deveria ser liberada porque o próprio Bolsonaro tinha feito uma “live” dizendo que não tinha problema: “já falei pra minha assessoria quem quiser meu cartão de vacina pode mostrar”, afirmou na transmissão por rede social.

Antes de decidir, a CGU pediu esclarecimentos ao Planalto. O Gabinete Pessoal do presidente alegou que não havia consentimento expresso de Bolsonaro para liberar a informação, nem tinha condição de consultá-lo, insistindo que o pedido envolvia um dado pessoal, protegido por lei.

Seguindo as decisões mais recentes da CGU, a analista responsável pelo caso elaborou, então, um parecer negando o acesso. Na reta final da gestão Bolsonaro, a chefia da Ouvidoria sugeriu que o pedido poderia ter outra conclusão: ser atendido se o presidente concordasse em liberar seu cartão de vacinação. Um segundo parecer foi, então, produzido. Os dois textos estão sob a forma de minutas, esperando decisão.

Se negar o pedido, a CGU apenas estaria aplicando a regra da gestão Bolsonaro de dar preferência ao sigilo sobre a transparência em casos relacionados a informação pessoal. Já se optar pela liberação, quem assinar o ato na Controladoria mandaria um recado para a futura administração petista de que está mais alinhado com a liberação de informações, ainda que isso tenha ocorrido apenas nas duas últimas semanas do fim do governo.

O cargo de ouvidor-geral na CGU está vago. O antigo ocupante foi indicado para ser superintendente no Espírito Santo no mês passado, contando com a possibilidade de permanecer na função por até quatro anos, segundo uma praxe adotada no órgão. O ouvidor-adjunto foi deslocado para uma função de diretoria. Um terceiro auditor, que ocupava a chefia de gabinete, assumiu interinamente a função de ouvidor com pretensões de permanecer no posto no futuro governo Lula.

Autonomia dos servidores

A produção de duplo parecer é inédita na CGU. O manual do órgão prevê que o parecerista recebe o processo, analisa o caso e chega a uma conclusão, redigindo uma proposta de decisão. Ou seja, no papel, tem autonomia para firmar seu convencimento. Se os chefes considerarem que a resposta final deve ser outra, incluem, após o parecer técnico, um posicionamento, justificando seus motivos para divergir.

O Estadão ouviu auditores e ex-ouvidores da CGU. Todos confirmaram que a produção de dois pareceres com conclusões diferentes é fora do padrão. “A situação é, no mínimo, inadequada e parece pôr em risco o que a experiência brasileira produziu de melhor: a autonomia do servidor-parecerista como garantia institucional ‘pró-acesso'”, diz José Eduardo Romão, o primeiro a ocupar o cargo de ouvidor na CGU, quando a LAI entrou em vigor em maio de 2012.

Para ele, é “natural e salutar” que o ouvidor possa conversar com pareceristas, desde que haja um ambiente “de segurança psicológica e controle”. “Mas, como há assimetria de poder, esse processo só pode ocorrer com as alçadas e prerrogativas claramente definidas, ou seja, com a garantia de que o parecerista exercerá sua função com autonomia”, afirma Romão.

‘Rascunhos’

Procurada, a CGU sustentou, por meio de nota, que dá liberdade aos pareceristas para produzirem seus despachos e confirmou a existência dos dois pareceres. Mas alegou que os textos são apenas “rascunhos” ainda não assinados nem submetidos às chefias do setor. Informou ainda que os documentos foram produzidos antecipadamente porque a analista do caso entraria de férias. A Ouvidoria reconheceu que houve conversa entre a servidora e seu superior e que este falou que o caso poderia ter decisão pela liberação da informação se houvesse o consentimento do presidente da República.

Ainda segundo a Ouvidoria, foi encaminhado ao gabinete do ministro Wagner Rosário, chefe da CGU, um novo pedido para que Bolsonaro seja diretamente consultado e diga se aceita ou não liberar seu cartão de vacinação. Ainda não houve resposta.