22/08/2022 - 23:16
mos. De confraternização entre familiares e amigos a estilo de vida, ou lifestyle. De churrasqueiros a BBQ influencers. Já deu para perceber como a cultura de preparo de carnes dos Estados Unidos está ganhando espaço por aqui. Mas a brasilidade gastronômica não está ameaçada, pois os sabores, os temperos e a criatividade peculiares à cozinha e às churrascadas que acontecem pelo País têm espaço garantido. Na verdade, essa condição vem desde as fazendas, pois a produção nacional de gado de corte também tem sua nobreza.
Que o diga o engenheiro agrônomo e especialista em carnes de alta qualidade Roberto Barcellos. São três décadas de experiência com atuação junto a pecuaristas, dentro da indústria e desenvolvendo o varejo, e agora presta consultoria a toda a cadeia e é sócio da loja BBQ Secrets.“Hoje, olho para um animal e já defino o mercado certo para ele e o potencial de consumo”, afirmou. Segundo Barcellos, o conceito do mundo da hamburgeria, das steak houses e das churrascarias está ajudando a organizar o campo também.
A transformação nesse ambiente resulta da sinergia entre o próprio segmento de churrasco e os consumidores, que começaram a distinguir a commodity do nicho de mercado, voltado ao público de maior poder aquisitivo. De acordo com Barcellos, este segundo cresce 20% todo ano, há uma década. Mas a virada de chave se deu mesmo em 2015, com a primeira edição da Churrascada, festival gastronômico realizado na capital paulista pelos chefs Rogério Betti e Gustavo Bottino em parceria com a agência de entretenimento Haute.
Naquela oportunidade, cerca de mil pessoas consumiram 2 toneladas de carnes preparadas por 15 chefs. Barcellos estava lá, e ficou impressionado por nunca antes ter visto tantas pessoas que não tinham relação com pecuária ou frigorífico celebrando em torno do churrasco, do fogo. “A partir dali, começaram a falar mais sobre qualidade, raças bovinas e tipos de carne”, disse. Mais do que conversar a respeito, o público demonstrou disposição em pagar mais por um corte de melhor qualidade, como já fazia com o café, o vinho e a cerveja.
CULTURA O nível de interesse que só se via em países como Estados Unidos, Argentina ou Austrália vem se tornando comum por aqui, é um processo de mudança cultural. Hoje, não há quem compre um corte nobre sem antes fazer praticamente uma auditoria sobre o produto para obter várias informações: a raça do animal, o nível de marmoreio, se a carne é maturada e por quanto tempo, se é dry aged (maturação a seco), que madeira usa no preparo, quais temperos. “As pessoas querem consumir informação como nunca”, afirmou Barcellos.
Não por acaso, o universo do barbecue invadiu os canais de televisão voltados à gastronomia e as redes sociais. Churrasqueiras e churrasqueiros viraram celebridades nas plataformas digitais como Instagram e YouTube, onde têm milhões de seguidores e colecionam milhares de curtidas e views. Essa popularidade também alavancou a indústria em torno do negócio, que vai desde facas e acessórios especiais, vestuário personalizado, sais e temperos, até equipamentos como os pits de defumação.
O restaurante Toro Negro, em Bragança Paulista (SP), é uma mostra desse avanço. Um dos equipamentos de preparo das carnes, batizado de T-Rex, é um pit de defumação que tem 7,5 metros de comprimento, pesa três toneladas e suporta uma carga de 500 kg. “Ele foi construído aqui mesmo, com o que tínhamos disponível, como se faz nos Estados Unidos”, disse Eduardo Krisztán Pedroso, que divide a sociedade do lugar com Alfredo Mantovani e Leo Souza.
Pedroso também é zootecnista, diretor-executivo de Originação da JBS e tem uma carreira profissional dedicada à produção de carne de qualidade. Ao se tornar sócio do restaurante, uma de suas missões foi exatamente garantir a padronização no abastecimento dos cortes. Esse rigor passou também para o preparo, tudo é feito com ficha técnica, até da temperatura da grelha, do defumador e dos pratos prontos. “O que você comer hoje vai encontrar igualzinho daqui a seis meses”, afirmou. Esse cuidado é essencial para a fidelização dos clientes, na maioria consumidores que já aderiram ao lifestyle texano. O compromisso, aliás, está firmado logo na entrada do restaurante, onde há uma placa avisando que o lugar é praticamente um pedacinho do Texas em São Paulo.
PLURALIDADE Embora esse novo momento do churrasco exija disponibilidade dos consumidores para botar a mão no bolso, ainda mais com a alta dos alimentos, é possível criar oportunidades para que mais gente tenha acesso às carnes diferenciadas. É o que tem feito a churrasqueira Tatiana Castro, ou Preta, como prefere ser chamada. Moradora do Jardim do Lago, na Zona Sul da cidade de São Paulo, levou para dentro da periferia o que via nos lugares onde estudou e trabalhou com as carnes. “Comida não pode ser um artigo de luxo”, afirmou.
O interesse por grelhados e defumados é antigo, tanto que Preta era sempre a churrasqueira da vez entre familiares e amigos. Estudou gastronomia, buscou referências dos profissionais de destaque nas redes sociais – a quem “perturbava” para conseguir dicas valiosas – e procurou aprender trabalhando como voluntária em eventos de churrasco. Entendeu que poderia compartilhar um pouco de tudo aquilo com a vizinhança e criou o evento A Laje da Preta. Fez de um espaço na sua própria casa um ponto de encontro para apaixonados e curiosos por carnes, para compartilhar na quebrada o que via o pessoal comendo nos festivais.
Às vezes Preta recebe mais gente de fora do que ali do bairro. E seu cartão de boas-vindas costuma ser a costela bovina, o corte que mais admira, preparada no tradicional fogo de chão. “É um processo longo que mostra o que é um churrasco. Falta conhecimento. Algumas pessoas acreditam que aquilo não é para elas”, afirmou. Criar momentos assim exige muita dedicação e persistência, até para encontrar produtos de qualidade por um preço acessível. Esse comprometimento não falta à churrasqueira, que pensa até em criar um curso de iniciação à gastronomia para a criançada, como projeto social. “Parcerias são bem-vindas.”