22/11/2025 - 10:20
A um mês de chegar aos 81 anos, a cineasta Adelia Sampaio conta uma vida marcada por rupturas, coragem e humor, com um papel histórico que inspira a produção cultural do país até hoje.
Em 1984, tornou-se a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, com Amor Maldito, um filme que ousou retratar um relacionamento entre duas mulheres em plena ditadura militar e enfrentou censura, machismo e ausência total de financiamento.
De Minas ao cinema russo
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Nascida em Belo Horizonte, a cineasta passou parte da infância em um abrigo em Santa Luzia do Rio das Velhas (MG). Por determinação da patroa, a mãe, Guiomar, que era empregada doméstica, entregou a menina à instituição, aos 7 anos. Hoje, Adelia revisita sua memória com uma mistura de franqueza e ironia.
“Eu fui criada num asilo, no interior do interior, sem nem saber que cinema existia”, lembra.
Guiomar tinha se mudado para o Rio de Janeiro, com as duas filhas, para morar e trabalhar na casa da patroa, deixando para trás uma situação de extrema vulnerabilidade. A virada simbólica permanece na imagem que Adélia ainda guarda: “A primeira coisa que eu vi foi o relógio da Central do Brasil”, recorda.
Entretanto, a patroa não aceitou que a empregada trouxesse as meninas para sua casa e impôs a separação.
“A patroa da minha mãe colocou a minha irmã no colégio interno, e minha mãe teve que me deixar em Minas novamente. Lembro bem das belas roupas que a patroa da minha mãe comprou na Loja Sears, na Praia de Botafogo, para que depois eu fosse para o asilo’’.
A cineasta morou até os 12 anos no abrigo, e sua reunião com a família e a entrada no cinema tiveram a ver com sua irmã mais velha, Eliana.
”Foi minha irmã Eliana, que trabalhava como revisora de filmes russos em uma distribuidora da Cinelândia, no centro do Rio, conseguiu convencer minha mãe a deixar o trabalho em casa de família e me buscar em Minas”, conta emocionada.
De volta ao Rio de Janeiro, bastou uma sessão de cinema com a irmã para Adélia mergulhar em um novo mundo:
“Eliana me levou com 13 anos ao cinema pela primeira vez, para assistir a Ivan, o Terrível, de Sergei Eisenstein. Eu saí encantada, feliz da vida, e falei: ‘Eu vou fazer isso’. Riram da minha cara, claro. Mas eu fiz”, relembra.
Primeiros filmes
Adélia começou no cinema como recepcionista, nos anos 60, na Difilm [Distribuidora de Filmes Ltda.], que funcionava como uma produtora e distribuidora de filmes independentes no bairro da Cinelândia e tinha como sócios grandes nomes do Cinema Novo como Glauber Rocha, e Leon Hirszman. Sua rotina, entretanto já envolvia uma série de tarefas que são consideradas do escopo da produção.
Entre trabalhos administrativos em distribuidoras e laboratórios de pós-produção, Adélia aprendeu o ofício pela prática, pelo improviso e pela persistência.
Ela conta que carregava negativos dentro de um embrulho de jornal e os guardava na geladeira azul de casa, onde também congelava carne: “Me ensinaram que o negativo não estragava assim, então eu guardava tudo ali”.
Foi aos 22 anos que dirigiu Denúncia Vazia (1979), seu primeiro curta, sem recursos mas com a rede de confiança e afeto construída no meio cinematográfico.
Já casada e mãe, ela montava seus filmes de madrugada, quando estavam disponíveis as cabines que hoje são chamadas de ilhas de edição.
A amiga e montadora Helza Fialho, que tinha acesso ao equipamento profissional, encorajava. “Vamos fazer de graça. Arranjo champanhe”, dizia a amiga, segundo Adelia.
Pioneirismo
A ascensão da cineasta se dá em um contexto de quase completa ausência de mulheres negras atrás das câmeras. Quando questionada sobre as barreiras enfrentadas, ela resume com contundência:
“Ser mulher, negra e cineasta no Brasil é ser bastarda três vezes. Deus deve ter olhado e dito: ‘É dela’”
Ainda assim, sua filmografia nasce justamente do lugar que a sociedade insistia em lhe negar: o da autoria, da assinatura, do controle narrativo.
No início dos anos 1980, em plena vigência da censura na ditadura militar, Adelia decide filmar Amor Maldito. O roteiro é inspirado em um caso real que havia ganhado as páginas policiais: um suposto romance entre duas mulheres, em que uma delas é encontrada morta após um suicídio. A imprensa transformou o drama em espetáculo moralista, criminalizando a sobrevivente.
Adélia mergulhou nos arquivos, conversou com envolvidos, escreveu a primeira versão do roteiro com o jornalista e escritor José Louzeiro. Ela sabia exatamente a rejeição que enfrentaria.
“Eu tinha certeza de que ninguém ia me dar dinheiro para dirigir um filme sobre lésbicas, suicídio e ainda com uma mulher negra atrás da câmera. Então, fomos com a cara e a coragem.”
Sem financiamento da Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme), empresa pública que apoiava o cinema brasileiro e foi extinta em 1990, o longa foi realizado com apoio voluntário de atores, equipe técnica e amigos.
Para que fosse distribuído, Adelia acabou aceitando que Amor Maldito fosse classificado como pornochanchada — categoria que, nos anos 1970 e 1980, garantia acesso às salas de cinema, apesar do rótulo estigmatizante.
“Eu não tinha medo de ousar. Se o jeito de botar o filme na rua era esse, eu ia botar.”
Histórias reais
Assim como o longa de estreia, sua filmografia é atravessada por fatos verídicos. O curta Denúncia Vazia, por exemplo, nasce da história de um casal de idosos despejado após a aplicação da lei da “denúncia vazia”, que permitia ao proprietário recuperar o imóvel sem justificativa. Diante da impossibilidade de permanecer na casa onde viveram a vida inteira, os dois tiraram a própria vida.
Adelia procurou atores que admirava, Rodolfo Arena e Catarina Bonacasse, e os convenceu a participar. “Todo mundo dizia que eu era abusada. E eu era mesmo.”
Apesar de estar no centro de um marco histórico do cinema brasileiro, Adelia só descobriu que era a primeira cineasta negra do país muitos anos após a estreia de Amor Maldito. A revelação veio pela historiadora e cineasta Edileuza Penha de Souza, que encontrou seu nome em pesquisas sobre a participação de mulheres negras no audiovisual.
“Eu nem sabia. Fiquei emocionada. Mas também pensei: que loucura um país esperar tanto por uma mulher negra atrás da câmera.”
Em 2016, Edileuza criou a Mostra de Cinema Negro Adelia Sampaio, hoje referência para novos realizadores e pesquisadores do cinema afro-brasileiro.
A mostra chega à sétima edição em 2025, enquanto a própria Adelia se torna símbolo de uma geração de cineastas mulheres e negras que encontram em sua trajetória um ponto de partida.
Embora fale publicamente sobre sua origem, Adelia é categórica sobre sua linhagem paterna. “Sou filha de um dentista mineiro, Adélio. A família dele me procurou agora. Eu não quis. Minha mãe me criou sozinha. Ele, não. Não achei justo com ela.”
Para ela, a identidade racial nunca esteve em dúvida. “Eu sempre soube que era negra. Por causa da minha madrinha, da minha família. Só não sabia que isso iria virar um entrave em tudo. Mas virou.”
Aos 80 anos, Adelia continua sendo referência para cineastas mulheres, negras, LGBTQIA+ e para toda uma geração de realizadores que busca romper com padrões de representação. Sua obra segue sendo exibida em mostras, escolas, circuitos de formação e festivais no Brasil e no exterior. Mais do que pioneira, é considerada uma cineasta que transformou sobrevivência em estética, dor em narrativa e precariedade em potência criativa.
Apesar disso, ela confessa que o cinema foi primeiro um susto, para que depois fosse uma decisão em sua vida: “Saí daquele cinema e disse: ‘Eu vou fazer isso’. E fiz.”