Garantir aos produtores rurais o direito de ampla defesa por um período justo nos processos de demarcação de terras de quilombolas, além de segurança jurídica. Foram estes os principais temas defendidos pelo assessor da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Anaximandro Doudement Almeida, em debate na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPDR), da Câmara dos Deputados.

Sobre o primeiro ponto, contou que os produtores rurais são tratados de forma diferenciada, no processo administrativo, em relação às populações que reivindicam as terras. Enquanto as comunidades podem participar de todo o processo de demarcação – identificação, reconhecimento, delimitação, desintrusão, titulação e registro -, aos produtores rurais resta questionar a decisão num prazo exíguo de 90 dias após a demarcação. “Falta o contraditório”, afirmou.
Em relação à segurança jurídica, o problema é que muitos produtores têm títulos de propriedade que são, muitas vezes, centenários, anteriores à abolição, mas, mesmo assim, suas terras passam por um processo de demarcação para criação de quilombos. “É injustificável”.

É o caso dos produtores rurais de Morro Alto, no Rio Grande do Sul, que vivem um impasse que pode ter chegar aos tribunais. Apesar de terem títulos de propriedade que datam de 1796 e 1882 – anteriores, portanto, à lei que pôs fim à escravidão em 1888 – podem ter que deixar suas áreas. 

A demarcação do Quilombo do Morro Alto, de 4,5 mil hectares, pode desapropriar 950 famílias, incluindo os municípios de Capão da Canoa e Maquiné, que tiveram suas atividades financiadas pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “Como é que se pode falar em segurança jurídica?”, questionou.

A audiência pública foi organizada para discutir a situação da demarcação de terras quilombolas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Pará. Pela Constituição Federal de 1988, têm direito a áreas quilombolas aqueles que subsistiram nos locais tradicionalmente conhecidos como quilombos ou neles buscaram abrigo logo depois da abolição. É a chamada “posse centenária ou quase centenária”.
Doudement Almeida lembra, no entanto, que o conceito de quilombo, previsto na Constituição Federal de 1988, foi alterado pelo Decreto 4.487, de 2003. Assim, ampliou-se de forma significativa o número de áreas a serem demarcadas em todo o país, gerando insegurança jurídica no campo.

Antes da Constituição Federal, estimava-se em 56 as áreas de quilombos espalhadas no país. Nos últimos anos, no entanto, esse número saltou para 1.904, segundo dados da Fundação Cultural Palmares, responsável pelo processo de reconhecimento de remanescentes de comunidades de quilombos. Não há justificativa técnica para a criação da maioria das áreas, ocupadas há séculos por produtores rurais, a não ser as alterações conceituais promovidas pelo Decreto nº 4.887/2003.

Ele alerta, no entanto, para o risco da iniciativa. “Instrumentos que deveriam ser usados para auxiliar os remanescentes de comunidades quilombolas estão sendo usados para fomentar conflitos”, afirmou. Contou que muitas famílias de remanescentes quilombos não querem a demarcação de áreas.
Tribunais – Doudement Almeida falou, ainda, da inadequação do Decreto 4.887/2003 frente à Constituição. Em abril de 2012, o decreto foi declarado inconstitucional pelo voto do Ministro Relator, Cezar Peluso, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
É questionável em função de três dispositivos: o critério da auto-atribuição e autodefinição para caracterizar quem seriam os remanescentes das comunidades de quilombolas; a ocupação presumida (a fixação de que seriam as terras ocupadas por remanescentes todas aquelas utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural); e a outorga de título coletivo e pró-indiviso às  comunidades de remanescentes.