O Brasil, assim como outros países com clima tropical, enfrenta desafios recorrentes com doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como dengue, zika e chikungunya, problema que pode e agravar com as mudanças climáticas. Diante desse cenário, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fez um chamamento global para incentivar o desenvolvimento de novas tecnologias de combate ao mosquito.

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Por mais contraditório que pareça, entre as soluções está “fabricar” mais mosquitos. Mas com um detalhe que faz toda a diferença e justifica a escolha. Essa criação em larga escala é de mosquitos modificados geneticamente em laboratório para barrar, de duas diferentes maneiras, a disseminação do vírus.

Nesse contexto é que foi inaugurada uma nova fábrica da Oxitec em Campinas (SP). A companhia, de origem britânica, atua desde 2021 no Brasil na ‘fabricação’ de mosquitos. Mas até então, era empregada a técnica do ‘Aedes do Bem’, que atuava diretamente nas fêmeas dos mosquitos, que são as responsáveis pela transmissão das doenças, já que elas que se alimentam de sangue humano e, por isso, picam.

Agora na nova fábrica, a Oxitec atuará também com outra tecnologia, utilizando a bactéria Wolbachia. A previsão é produzir 190 milhões de mosquitos por semana com a bactéria incorporada. Uma vez no organismo desses insetos, o vírus não conseguem se reproduzir dentro do vetor, barrando a transmissão da doença.

Os locais são complexos biotecnológicos que funcionam como indústrias de insetos, onde cada etapa é rigorosamente controlada da alimentação ao ciclo de reprodução e à liberação dos mosquitos no meio ambiente.

Em julho, o Ministério da Saúde também inaugurou uma fábrica para a produção de mosquitos com Wolbachia em Curitiba (PR), por meio de uma parceria com a Fiocruz, a Wolbito do Brasil, o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) e o World Mosquito Program (WMP). A biofábrica paranaense tem uma produção que alcança 100 milhões de ovos por semana.

A maior do mundo

A Oxitec atua com defensivos biológicos para controle de insetos e pragas. Sua nova planta dedicada aos mosquitos tem 1300 m² e sua produção é projeta para ser a maior número do planeta.

Fábrica da Oxitec em Campinas (Crédito: Oxitec)

Para começar de vez a produção, a empresa aguarda liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Procurada pela IstoÉ Dinheiro Rural, a Anvisa afirmou que ainda não há previsão para a liberação e que o processo da empresa será tratado com a prioridade necessária, “em conformidade com as necessidades do cenário epidemiológico brasileiro”.

“Considerando que ainda não existe regulamentação sobre a matéria, a Anvisa irá considerar as evidências técnicas disponíveis e avaliar o pleito de forma alinhada às diretrizes do Programa Nacional de Controle das Arboviroses do Ministério da Saúde”, explicou a autarquia.

A agência informou que os aspectos a serem considerados incluem processos produtivos, sistema de garantia da qualidade que assegure o cumprimento das boas práticas de fabricação, rastreabilidade do sangue utilizado na alimentação dos mosquitos, sistema de liberação segura dos ovos infectados com Wolbachia, liberação dos lotes, avaliação taxonômica, monitoramento, processo de outcrossing, eficácia do método, estudos produzidos e seus resultados — a fim de garantir a eficácia e a segurança da tecnologia para os fins pretendidos.

O Ministério da Saúde informou que vem ampliando continuamente o uso do método Wolbachia, “conforme o planejamento”. A pasta destacou que, neste ano, o método está sendo implementado em 13 municípios. Para o próximo ano, a meta é chegar a mais 41 cidades.

Conheça as linhas de produção:

“Aedes do Bem”

A companhia, com sede em Campinas (SP), multiplica esses insetos e solta os machos modificados no laboratório na natureza para acasalarem com fêmeas selvagens.

As fêmeas descendentes desse cruzamento não chegam à fase adulta, não se reproduzindo e ajudando a reduzir o número de mosquitos e, consequentemente, os casos de contaminação.

Segundo a empresa, a tecnologia consegue reduzir em até 95% as populações de Aedes aegypti em comunidades urbanas.

Wolbachia

Neste método, a ideia é introduzir a bactéria Wolbachia nos mosquitos, multiplicá-los e soltá-los na natureza.

Nesse caso, são liberados machos e fêmeas portadores da bactéria, que irão acasalar com mosquitos selvagens e transmitir a bactéria aos descendentes. A Wolbachia tem o poder de impedir que o vírus das doenças se replique internamente nos mosquitos.

“Aos poucos, você vai substituindo uma população de mosquito de um determinado lugar que não tinha a bactéria e era capaz de transmitir doenças, por uma população que vai ter Wolbachia. Por isso chamamos de método de substituição — não estamos extinguindo os mosquitos, estamos substituindo”, explica a diretora-executiva da Oxitec Brasil, Natalia Verza Ferreira.

Pupas sendo vistas em lupa (Crédito: Divulgação)

Como funciona uma fábrica de mosquitos

A principal missão da fábrica é o escalonamento (multiplicação) de mosquitos que já possuem a modificação desejada, seja o gene autolimitante ou a bactéria Wolbachia.

Linhagem com Wolbachia: A bactéria é inoculada no mosquito uma única vez, por meio de uma microinjeção em laboratório (por exemplo, na matriz da empresa na Inglaterra). A partir de um casal infectado, a bactéria é passada aos descendentes. Os ovos que chegam à fábrica para multiplicação já estão infectados.

Ovos de mosquitos (Crédito: Oxitec)

Passo 1: Aquacultura (fase aquática – ovo à pupa)

O ciclo de produção começa com a inserção dos ovos que são colocados em equipamentos de aquacultura (semelhantes a bandejas com água), onde eclodem e passam pelas fases de larva (L1 a L4) até a pupa. O sistema é automatizado, controlando o fluxo de água (para oxigenação) e distribuindo alimento (ração) para as larvas. Essa fase aquática costuma durar de 8 a 10 dias.

Passo 2: Separação por sexo

Ao atingir a fase de pupa, os mosquitos precisam ser separados por sexo antes de irem para as gaiolas de acasalamento. A separação é feita pelo tamanho, as fêmeas são um pouco maiores que os machos. Utiliza-se um equipamento semelhante a uma “peneira invertida” ou uma malha, enquanto os insetos ainda estão na fase aquática.

Passo 3: Acasalamento (fase aérea – pupa ao adulto)

As pupas separadas são colocadas em gaiolas. Os mosquitos alados (adultos) emergem da água dentro das gaiolas, prontos para voar e acasalar. As salas de gaiolas são mantidas em condições controladas de temperatura (cerca de 27 °C) e umidade. Panos pretos são fornecidos para que os mosquitos possam pousar e descansar, evitando o gasto excessivo de energia.

Os machos se alimentam de néctar de flores, mimetizado por uma solução de água com açúcar em tubos. As fêmeas, para maturar os ovos, precisam de sangue; por isso, sangue de carneiro (grau farmacêutico) é colocado em uma placa e aquecido à temperatura corporal para que as fêmeas se alimentem.

As fêmeas depositam os ovos em papéis molhados, que simulam a interface sólido/água onde o Aedes aegypti naturalmente faz a postura. Os ovos aparecem como pontinhos pretos nesses papéis.

Passo 4: Coleta e empacotamento do produto final

Os ovos são removidos dos papéis molhados. Em vez de contar cada ovo (o que seria impraticável em larga escala), eles são pesados em balanças. A quantidade de ovos pesada (suficiente para liberar entre 100 e 200 mosquitos ao longo de um mês) é colocada em um pote, junto com uma ração para as larvas se alimentarem até a fase adulta.

O pote é selado (de maneira semelhante à tampa de um iogurte, com selo de alumínio) e colocado em uma caixinha. O produto (ovos secos) é estável por cerca de seis a oito semanas e pode ser enviado por transportadoras para qualquer lugar do mundo.

Utilização do produto (a caixinha)

  • Ativação: Adiciona-se água limpa da torneira à caixinha.
  • Emergência: Depois de 7 a 10 dias (o tempo varia conforme a temperatura), os mosquitos adultos começam a sair.
  • Duração: A caixinha dura 28 dias, período em que todos os mosquitos programados são liberados.
  • Descarte: Após 28 dias, a caixinha é descartada e substituída por uma nova.

No caso da Wolbachia, os mosquitos machos e fêmeas liberados acasalam com mosquitos selvagens, transmitindo a bactéria para os descendentes. Esse processo de substituição da população é contínuo e a soltura pode ser interrompida quando pelo menos 70% da população selvagem estiver com Wolbachia.

*Estagiário sob supervisão