Um tiroteio em Paraisópolis, que interrompeu a agenda do candidato ao governo de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), e a visita de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Complexo do Alemão, no Rio, colocaram as favelas em destaque na corrida eleitoral do segundo turno. Líderes comunitários, porém, reclamam da falta de propostas e dos discursos reducionistas, que se restringem as discussões sobre os locais à marginalização e à violência.

Urbanistas frisam que esses espaços são complexos e precisam de políticas integradas, que vão além de segurança, urbanização, regularização e habitação. Com a pandemia e crise econômica, olhar para essas localidades e os desafios a elas associados é cada vez mais urgente, alerta.

Presidente da Central Única das Favelas (Cufa), Preto Zezé avalia que candidatos falham na tarefa de pautar a favela. “Há um distanciamento do mundo político das favelas”, diz. Enquanto “um ataca o outro”, avalia, temas centrais para as comunidades ficam de fora do debate.

“Ficou-se muito ainda num discurso do que já foi feito ou num discurso de apelo ao medo das favelas relacionado à violência, relacionado à questão de criminalidade, essa coisa de valores, mas, por exemplo, não se falou que 43% das favelas querem empreender. Qual é o plano para isso? Hoje, muitos jovens que já estão na universidade, a maioria de escola pública e de favela, querem, por exemplo, morar num lugar próprio, ninguém ofereceu nenhuma proposta de moradia subsidiada para essas pessoas”, exemplifica.

Celso Athayde, empreendedor e fundador da Favela Holding, avalia que a centralidade da favela nas construções eleitorais “fica a desejar”. “Precisamos de participação efetiva na construção do plano de governo desde a pré-campanha”, defende.

O líder comunitário de Paraisópolis e presidente do G-10 Favelas, Gilson Rodrigues, reclama que as favelas só são lembradas no período eleitoral e, quando viram pauta, são debatidas pelo viés da marginalização e da violência. Ele também avalia que faltam propostas concretas para as comunidades: “Não estou vendo propostas para as favelas.”

Ele frisa que é “incorreto” que houve atentado a Tarcísio na comunidade paulista e pede que candidatos discutam “atentados reais” contra as favelas, como a fome e o desemprego, por exemplo. “Para poder ajudar as favelas a prosperarem, para ajudar as favelas a terem dinheiro no bolso, que é a melhor forma de combater violência, é dinheiro no bolso, ajudar as pessoas a empreender, transformar a sua vida. Precisamos que o nosso potencial seja pautado pelos candidatos.”

De quem é a responsabilidade e o que fazer?

Pesquisadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da Universidade de São Paulo (USP), Isadora Guerreiro comenta que, socialmente, há, de fato, uma tendência de olhar para as favelas como um “caso de segurança pública” e, por isso, “um lugar a ser combatido”. Para ela, porém, o olhar deveria ser outro.

“São espaços urbanos, como outros espaços urbanos, de moradia, de comunidades, que foram em grande parte deixados de lado pelo Estado durante muitos anos, e, portanto, tiveram que autopromover toda a sua infraestrutura urbana. Isso gera uma extrema precariedade muitas vezes. A gente não pode culpabilizar as comunidades por isso”, defende.

Segundo Isadora, as políticas de infraestrutura e regularização fundiária são de responsabilidade do poder municipal, no entanto, para encarar os desafios, Estados – cedendo terras, por exemplo – e, principalmente, União – com liberação de recursos e uma política nacional de habitação – podem ajudar. “Urbanização é uma coisa muito cara. Historicamente, o governo federal é bastante responsável pelos recursos para fazer isso.”

Por mais que urbanização e regularização fundiária estejam no cerne da questão, os desafios atrelados às favelas só serão superados com políticas integradas, que envolvam educação, saúde, transporte e cultura, por exemplo, de acordo com Isadora. “A moradia é só o começo. Ela não resolve tudo. Precisa-se de um olhar integrado.”

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2010 e 2019, o número de domicílios em aglomerados subnormais cresceu 59% e ultrapassou os 5 milhões. O IBGE define aglomerado subnormal como ocupação irregular, caracterizado “por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas que apresentam restrições à ocupação”.

Em números absolutos, São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com a maior quantidade de lares em favelas. Proporcionalmente, cidades pequenas e capitais do Norte e do Nordeste chamam atenção. No Amazonas, por exemplo, as residências em aglomerados subnormais representam mais de 35% de todos os domicílios ocupados no Estado.

“Esses números são assustadores, mas devem ser muito piores”, alerta Isadora Guerreiro. A pesquisadora lembra que os dados mais recentes são amostrais e não refletem impactos da pandemia da covid-19. Com crise sanitária e econômica, relata, houve visível expansão das ocupações e também incremento da verticalização que já ocorria nesses espaços urbanos.

Segundo ela, tudo isso indica que a questão precisa ser “urgentemente” encarada, principalmente, pelo governo federal, que tem os recursos para fazer um plano nacional de habitação. A real dimensão das comunidades só será visualizada, porém, com a divulgação de um novo Censo.

Voto nas comunidades

As lideranças frisam que há diversidade dentro das favelas e não tem como se pensar em um “voto da comunidade”. Gilson Rodrigues afirma que é “maldoso” e “preconceituoso” pensar que todos os moradores da comunidade votem em um mesmo candidato só por ali viverem. “Paraisópolis e as favelas do Brasil têm consciência do seu papel ou buscam desenvolver essa consciência. Nós estamos olhando as propostas, estamos olhando o que estão falando sobre nós e vamos tomar a decisão que melhor se identifica com as nossas causas”, diz.

Nesse sentido, a mestranda em Ciência Política da USP e pesquisadora do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo, que estuda a participação de movimentos sociais em políticas públicas voltadas a periferias, Victoria Lustosa Braga, destaca que a população periférica representa uma larga fatia do eleitorado e que esses territórios têm uma “grande potência de articulação política e territorial”. “A população que vive nesse território quer se tornar agente de política pública, não só público-alvo.”

Ela observa que, nos últimos pleitos, houve aumento da eleição de candidatos ligados a pautas das periferias para compor o Legislativo. A pesquisadora cita, como exemplos, o Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), Natália Bonavides (PT-RN) e Matheus Gomes (PSOL-RS). Victoria avalia que isso é um “sinal importante da ascensão desse tema no debate público”.

Em relação à corrida presidencial, o cientista político e professor da FGV-SP, Marco Antonio Carvalho Teixeira, acredita que o discurso de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre as comunidades tem sido “muito mais respeitoso” do que o de Jair Bolsonaro (PL). Ele avalia que falas do presidente e candidato à reeleição que associam moradores do Alemão à criminalidade podem lhe custar votos.

Em debate da Band, Bolsonaro confundiu o Complexo do Alemão com o do Salgueiro, que fica em São Gonçalo, e disse: “Eu conheço o Rio de Janeiro, o senhor (Lula) esteve atualmente no Complexo do Salgueiro. Não tinha nenhum policial ao seu lado. Só traficante.”

No dia seguinte, no Twitter, escreveu que “todos sabem que em áreas dominadas pelo tráfico só entra em paz quem é amigo dos bandidos”. “Ao afirmar que visitou uma comunidade controlada por uma das maiores facções sem nenhuma proteção, coisa que nem a polícia consegue, Lula mostra mais uma vez que é o candidato do crime”, continuou.

Boné

Na visita ao Alemão, Lula usou um boné com as letras “CPX”. Nas redes, apoiadores do presidente chegaram a usar a sigla para associar o adversário ao crime, dizendo que seria uma abreviação para a palavra “cupinxa”, que remete ao tráfico. No entanto, ela significa “complexo”.

Na visão de Teixeira, é possível que moradores de periferias, que se sentiram ofendidos por essas falas e tenham votado em Bolsonaro em primeiro turno, mudem de voto, inclusive. “Você tem dois tipos de público. O público que ele é afetado pela fala, que mora e sabe que ali moram famílias, pessoas que saem todo dia pra trabalhar e que estão a procura de emprego, que sofrem mais pelo desemprego, com a perda de renda; e o público que, mesmo não morando lá, também tem um apreço muito grande pelo respeito às pessoas, sobretudo aos mais pobres, e realmente se incomoda bastante com esse tipo de discurso”, fala. “Não sei te dizer qual é o tamanho da perda de votos, mas certamente o impacto vai ter”, completa.