O vídeo de um comboio de crianças de bicicleta a caminho da escola em Barcelona viralizou nas redes sociais neste ano. Por lá, há algumas “linhas” por vias da vizinhança até a unidade escolar, iniciativa também realizada em ao menos dez instituições educacionais em Lisboa. Outros projetos têm se consolidado em cidades europeias e latino-americanas, como em Bogotá, com o empréstimo de bicicletas. Por aqui, há atividades próprias ou em parcerias, como é o caso das “biciclotecas”.

O Instituto AroMeiaZero criou o projeto Rodinha Zero, que atua em unidades de ensino e na formação de “multiplicadores”, com propostas adaptadas à demanda que envolvem pais, educadores, comunidade e crianças ao longo de cerca de dois a três meses, divididas em cinco etapas, com diagnóstico (características locais, experiências dos alunos etc) e atividades de vivência. “A gente vê a bicicleta como ferramenta de mudança social”, define Murilo Casagrande, um dos diretores do instituto. Segundo ele, foram mais de 4,2 mil crianças participantes desde 2016, a maioria de 4 a 11 anos, em parte iniciadas com bicicletas sem rodinhas e pedais, nas quais se trabalha equilíbrio.

Um dos pontos que Casagrande defende é a difusão de “biciclotecas” nas escolas, para atender aos alunos, especialmente os que não têm bicicleta em casa. Para ele, as frotas escolares seriam uma alternativa menos custosa e que tem potencial de receber doações, por envolver um item com uso restrito a alguns anos da fase de crescimento. Nessas dinâmicas, as crianças podem se revezar para utilizar a bicicleta, enquanto outras fazem desenhos ou outras atividades lúdicas com a temática. Cones, desenhos no chão ou bolhas de sabão podem ajudar a guiar os caminhos, sempre com a presença de monitores por perto.

Um exemplo é o trabalho realizado na Escola Municipal de Ensino Infantil Dona Rosa de Araújo, na zona sul de São Paulo. Procurado pela coordenadora pedagógica Cristiane Teixeira Magen, o Rodinha Zero identificou que 94% das crianças não sabiam andar de bicicleta sem a roda de apoio antes das atividades, nas quais 62 de 246 alunos de 4 a 6 anos deram as primeiras pedaladas.

Cristiane conta que uma professora até compara a experiência de ver os pequenos terem o primeiro contato com a bicicleta com a de aprender a ler, por ser também a aquisição de linguagem corporal. “Creio que é o papel da escola ensinar uma atividade que tem essa função”, diz. “Na pandemia, a gente recebeu crianças com defasagem de movimento global, de caminhar, de subir no escorregador.

Hoje, a escola tem uma frota de 30 bicicletas, ofertadas durante as atividades na quadra, cujo entorno recebeu a pintura de uma ciclovia. “Cada sala já tem o tempo programado”, comenta a coordenadora. Por volta de 2015, ela havia feito parceria semelhante em uma escola de ensino fundamental, dando origem a um Festival da Bicicleta, com discussões em atividades diversas. “Vejo o ciclismo como uma forte ferramenta de política pública, de inclusão de crianças e jovens no espaço público de maneira sustentável”, avalia. “As interações que proporciona, com o próprio corpo, com o coletivo, com o espaço, com a cidade. E também de superação de déficits”, aponta. “A escola não é uma ‘sala de jaula’. Aqui, a gente reforça o caminhar pelo bairro.”

Também na capital paulista, na rede privada, o Colégio Dante Alighieri fez atividades com bicicletas e outros modos de transporte em uma semana temática de outubro. “A ideia surgiu pela necessidade de resgatar e imergir as crianças dentro desse ambiente escolar de brincadeiras tradicionais e práticas corporais realizadas em espaços públicos”, explica Adriano Jantalia, coordenador do departamento de Educação Física. Na educação infantil, por exemplo, a atividade envolveu a simulação de uma vizinhança, com ônibus, pista de veículos automotores, ciclovia e afins, como uma educação no trânsito. “Muitos alunos tiveram o primeiro contato com a bicicleta aqui, na escola. Até porque, pela pandemia, não puderam sair tanto de casa. A gente percebeu essa necessidade”, relata. “Tivemos crianças que saíram pedindo para os pais comprarem bicicletas.”

Também no ambiente educacional, uma das principais referências é o projeto Bicicleta na Escola, idealizado pela professora de Educação Física Ana Destri, da rede municipal de Florianópolis, apresentado até em eventos no exterior. A ideia veio das perguntas dos próprios alunos da 5.ª série, intrigados pela docente utilizar a bicicleta como transporte. “Perguntavam se era cansativo, seguro, se eu tinha medo”, conta Ana.

A partir dessa situação, ela começou a perceber as dificuldades de mobilidade que os estudantes enfrentavam nos trajetos e a pensar como orientá-los a utilizar a bicicleta como um meio, para evitar acidentes. “A gente não só ensina a criança a aprender a andar, mas também desperta um senso crítico para a mobilidade”, comenta.

IMPACTOS

Coordenador do Programa Criança e Natureza, do Instituto Alana, JP Amaral fala em um “desemparedamento da infância” em contraponto ao que avalia com um cotidiano enclausurado, especialmente nas grandes cidades. “A bicicleta talvez seja o primeiro impulso de autonomia da criança na relação com os pais, em vez de caminhar dando a mão, ela pode ir livremente por perto e adquirir a independência de se locomover por locais cada vez mais distantes”, acrescenta.

Além disso, percebe que se trata de um meio que também pode ajudar aos adolescentes que convivem com a chamada “ansiedade climática”, por ser sustentável e de baixíssimo impacto ambiental.

Até nas prefeituras há iniciativas. Em Vitória e Fortaleza, os sistemas de compartilhamento de bicicletas incluem modelos infantis. Além disso, em Porto Alegre, um chamamento público deste mês para a operação desse tipo de rede exige a oferta obrigatória de modelos para crianças.

EXEMPLO FAMILIAR

Os olhares de desaprovação e estranhamento eram comuns, mas a editora de vídeo Silvia Ballan, de 50 anos, não cogitou deixar de levar a filha Nina na garupa da bicicleta até a escola. “Uma mulher na rua uma vez disse ‘Coitada dessa criança que precisa ir de bicicleta, que não tem carro'”, recorda-se.

Ela percebe, contudo, que a experiência as deixou mais conectadas e também afetou o desenvolvimento da menina, hoje com 14 anos, que utiliza a bicicleta como um dos principais meios de transporte. “Foi importante para ela ter independência, autonomia, exercer a cidadania, perceber que tem responsabilidade com o próximo”, pontua. “Nunca consegui colocá-la na rua. São três quilômetros até a escola.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.