15/04/2013 - 11:46
É difícil pensar em cachaça entre pipetas e cadinhos de um laboratório. A bebida combina mais com mesa de bar e roda de amigos. Melhor, ainda, se a pinga for bem fermentada e bem destilada. Em tonéis de madeira de até 700 litros, descansando por anos a fio, a bebida nacional já disputa lugar com destilados considerados mais nobres, como o uísque. É o caso da cachaça Havana – O Mito, produzida em Salinas (MG), envelhecida por dez anos, e cuja garrafa chega a custar R$ 400. Pois bem: o professor Valter Arthur, do Centro de Energia Nuclear (Cena) da USP, em Piracicaba (SP), juntou seus apetrechos de laboratório, abasteceu-se de cachaça jovem e decidiu pesquisar como a ciência poderia ajudar no envelhecimento da bebida. Desde 2010, Arthur estuda os efeitos da irradiação gama do cobalto 60 na cachaça. A técnica tem mostrado que é possível envelhecê-la em apenas 15 minutos. “O envelhecimento é uma das etapas mais importantes para a obtenção de um produto de alta qualidade”, diz Arthur. “Em escala industrial, o processo seria ainda mais rápido: no máximo cinco minutos.”
Submetida a doses de irradiação de cobalto 60, entre 150 gray e 300 gray (gray é a unidade que mede a quantidade de energia que o produto absorve), a cachaça tem os seus átomos ionizados, ou seja, excitados eletricamente pela energia. “Isso interfere na formação de radicais livres e faz com que o pH e o teor alcoólico da bebida sejam reduzidos”, diz Arthur. “É o que atesta o envelhecimento.” Segundo o professor, a irradiação entra como o último processo, depois que a bebida é engarrafada. Ele afirma que hoje os produtores já poderiam usufruir da tecnologia, principalmente os da região Sudeste. O País conta com cinco irradiadores comerciais em operação e todos estão no Estado de São Paulo, nas cidades de Cotia, Jarinu, Campinas, São José dos Campos e na capital.
Atualmente, o cobalto 60 é o material mais usado como fonte de irradiação de alimentos, especialmente condimentos e salgadinhos para aperitivo, além de ser empregado na esterilização, desinfecção e desinfestação de diversos produtos, entre eles equipamentos hospitalares. “Como as máquinas irradiadoras estão em São Paulo, a logística talvez seja o único entrave para o uso da técnica”, diz. De acordo com o professor da USP, a exposição à irradiação gama não contamina os materiais irradiados nem os transforma em produtos radioativos. Atualmente, o custo para irradiar cerca de mil litros de cachaça ficaria entre R$ 20 e R$ 30, ou seja, apenas entre dois e três centavos, por litro. “Ainda não calculamos o frete, mas, pelo custo do processo, o envelhecimento por irradiação pode trazer vantagem ao produtor”, afirma Arthur.
Outra novidade descoberta pelo estudo da cachaça irradiada foi a redução no nível de aldeídos – composto químico orgânico, responsável pela dor de cabeça causada pela ressaca. “A cachaça de boa qualidade já tem, por natureza, uma quantidade de aldeídos menor”, diz Arthur. Quanto à aparência e ao sabor da bebida irradiada, não ocorre alteração.
Para que a cachaça ganhe a aparência de envelhecida, semelhante à da curtida em tonéis de madeira, Arthur e a estudante de iniciação científica Juliana Ângelo Pires testaram diferentes extratos acrescentados à bebida. O primeiro deles foi o urucum, alvo também de estudo com irradiação, em um projeto de final de curso do Cena. “A irradiação era utilizada para fortalecer a planta do urucum e aumentar os seus benefícios à saúde”, diz Arthur. “Agora estamos testando outros xaropes”, diz. Segundo Juliana, os testes com extrato de própolis, sucupira, ipê-roxo e uva não alteraram a composição química da bebida. “A cor amarelada parece mais saborosa aos olhos do consumidor”, diz Juliana. Resta saber se os fãs da “água que passarinho não bebe” vão aprová-la.