Os produtores de soja brasileiros estão avançando cada vez mais na floresta amazônica para plantar mais de suas safras, pressionando um acordo histórico assinado há duas décadas com o objetivo de desacelerar o desmatamento.

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Muitos estão se aproveitando de uma brecha na Moratória da Soja na Amazônia, um acordo voluntário assinado pelos maiores comerciantes de grãos do mundo para não comprar soja cultivada em terras desmatadas após 2008.

A Moratória só protege florestas tropicais virgens, que nunca foram desmatadas, mas não outros tipos de vegetação no bioma e florestas que se recuperaram em terras previamente desmatadas, conhecidas como florestas secundárias.

Apesar de essas áreas também serem importantes para proteger o frágil bioma amazônica, fazendeiros podem desmatá-las para plantar soja sem violar os termos da Moratória e podem até mesmo vender produto como livre de desmatamento depois.

O relatório anual oficial mais recente sobre a Moratória, que abrange o ano-safra de 2022/23, mostrou que a soja plantada em florestas virgens quase triplicou entre 2018 e 2023, atingindo 250.000 hectares, ou 3,4% de toda a soja na Amazônia.

O monitoramento só cobre municípios com áreas de soja maiores que 5 mil hectares.

No entanto, Xiaopeng Song, um professor do departamento de ciências geográficas da Universidade de Maryland que acompanhou a expansão da soja nas últimas duas décadas, encontrou uma perda florestal quatro vezes maior.

Dados de satélite que ele analisou ​​exclusivamente para a Reuters mostram que 16% das terras destinadas à produção de soja na Amazônia em 2023, ou cerca de 1,04 milhão de hectares, foram plantadas em áreas desmatadas desde 2008, a data limite acordada na Moratória.

“Gostaria de ver florestas secundárias e florestas recuperadas incluídas na Moratória”, disse Song. “Isso cria brechas se limitarmos apenas à floresta primária.”

A Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que supervisiona a Moratória, afirmou em um comunicado que o acordo visa controlar o desmatamento de florestas primárias, enquanto outras metodologias têm critérios mais amplos que podem levar a “interpretações infladas”.

A Reuters não conseguiu fazer uma comparação detalhada porque a Abiove não compartilhou dados granulares.

Os dados do relatório da Moratória são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil, e suas avaliações são reconhecidas internacionalmente e monitoradas de forma independente.

A Abiove afirmou estar ciente de que parte da soja foi plantada em áreas onde florestas secundárias haviam sido desmatadas. A discrepância sobre como definir uma floresta tem enormes implicações para a conservação.

O desmatamento, a seca e o calor causados ​​pelas mudanças climáticas aproximam a floresta tropical de um ponto crítico, além do qual os cientistas temem que ela inicie uma transformação irreversível, tornando-se uma savana.

A maioria dos cientistas pede não apenas a interrupção de todo o desmatamento, mas também o aumento dos esforços de reflorestamento.

Viola Heinrich, pesquisadora com pós-doutorado no Centro de Geociências GFZ Helmholtz, que estudou extensivamente as florestas secundárias na Amazônia, afirmou que elas são “cruciais” para limitar o aquecimento global, mesmo que inicialmente sejam menos biodiversas.

“Não podemos atingir as metas do Acordo de Paris sem aumentar ativamente o sumidouro de carbono”, disse ela, referindo-se à regeneração de ecossistemas que absorvem e armazenam carbono rapidamente.

As florestas secundárias absorvem carbono a uma taxa mais rápida do que as florestas primárias, mas armazenam menos.

“Roubado novamente”

Em uma tarde escaldante no final do ano passado, nos arredores de Santarém, cidade portuária às margens do Rio Amazonas, agricultores estavam nos últimos estágios de limpeza da terra, já prontos para atear fogo nos troncos remanescentes.

Algumas dessas árvores tinham cerca de três décadas e faziam parte de uma floresta secundária em terras que já foram desmatadas para dar lugar à pecuária, mas depois abandonadas, como mostraram imagens de satélite.

“O que você roubou uma vez, pode roubar de novo”, disse Gilson Rego, da Comissão Pastoral da Terra, um grupo afiliado à igreja que trabalha com moradores locais afetados pelo desmatamento, apontando para as áreas vizinhas onde a soja havia sido plantada.

Nos últimos cinco anos, Rego viu a área dedicada à cultura crescer vertiginosamente.

Mais de uma dúzia de produtores de soja e de subsistência que conversaram com a Reuters disseram que o principal atrativo era o terminal da Cargill nas proximidades, de onde a soja é enviada para outro países. A Cargill não respondeu aos pedidos de comentário.

O crescimento ajudou o Brasil a ultrapassar os Estados Unidos em 2020 como o maior exportador mundial de soja.

Cerca de dois terços do produto é exportado para a China, cujo maior comprador, a Cofco, aderiu à Moratória e afirmou no início deste ano que estava comprometida com ela. Quase toda a produção é usada para engordar animais para a produção de carne.

Ainda assim, Song estimou que mais 6 milhões de hectares de floresta tropical teriam sido perdidos para a soja no Brasil sem a Moratória e os esforços de conservação relacionados, considerando o ritmo de expansão em outros lugares.

A vizinha Bolívia, disse ele, tornou-se um foco de desmatamento.

Agricultores brasileiros sempre se opuseram à Moratória e reclamaram que mesmo um pequeno desmatamento pode levar comerciantes a bloquear compras de fazendas inteiras, uma política que a Abiove está considerando mudar.

Milhares de propriedades que cobrem cerca de 10% da área plantada com soja na região estão atualmente bloqueadas.

Adelino Avelino Noimann, vice-presidente da associação de produtores Aprosoja do Estado do Pará, disse que o boom da soja criou oportunidades em um país pobre.

“Não é justo. Outros países na Europa fizeram desmatamento para poder crescer, e a gente não pode por causa de leis que nem sequer são nossas”, disse Noimann.

Ataques judiciais

Grupos agrícolas aliados a políticos de direita, antes um movimento marginal, lançaram ações judiciais e ataques legislativos contra a Moratória em Brasília e em vários Estados agrícolas, buscando enfraquecer suas disposições.

No final de abril, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que permitiria que o maior Estado agrícola do país, o Mato Grosso, retirasse os incentivos fiscais dos signatários da Moratória. Mas sua decisão ainda precisa ser confirmada pelo tribunal.

André Nassar, presidente da Abiove, já insinuou que a associação poderia enfraquecer as regras para apaziguar os agricultores.

“A resolução não está em acabar a Moratória e nem manter do jeito que está”, disse Nassar aos senadores em abril. “Algo tem que ser feito.”

Tradings globais, incluindo ADM, Bunge, Cargill, Cofco e Louis Dreyfus, assinaram o acordo em 2006.

A Abiove e as tradings de grãos que ela representa se recusaram a discutir publicamente os detalhes, mas o grupo ambientalista Greenpeace, que participa de algumas discussões, afirmou no ano passado que, a portas fechadas, houve uma pressão das tradings para enfraquecê-lo.

Ambientalistas como André Guimarães, diretor executivo do IPAM, outra organização sem fins lucrativos que monitora o acordo, disseram que, mesmo com suas falhas, ele era importante.

“Ainda vemos a expansão da soja na Amazônia”, disse ele. “Mas poderia ser pior.”

Outros ambientalistas disseram que o acordo deveria ser reforçado com o fechamento de brechas.

Água abundante e solo rico em nutrientes são os principais motivos pelos quais agricultores de outras partes do país, incluindo o Mato Grosso, região produtora de soja, se mudaram para o Pará.

“A gente tem uma situação climática diferente. Outras regiões não tem a quantidade de chuva. Por isso havia muita migração de Mato Grosso. A gente pode ter três safras”, disse Edno Valmor Cortezia, presidente do sindicato local de agricultores, acrescentando que os agricultores podem cultivar soja, milho e trigo na mesma área em um único ano.

No município de Belterra, próximo a Santarém, a expansão da soja parou apenas em um cemitério e uma escola locais.

Raimundo Edilberto Sousa Freitas, o diretor, mostrou à Reuters registros judiciais e evidências de dois casos em que 80 crianças e professores apresentaram sintomas de intoxicação por pesticidas no ano passado.

Um agricultor foi posteriormente multado, mostraram os registros, mas a cultura continua a tomar mais área a cada ano.

Ocasionalmente, algumas árvores imponentes, protegidas por lei, são deixadas em extensos campos de soja, a última lembrança do bioma exuberante que outrora existiu ali.