Quem percorre a paisagem europeia de Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, vai se deparar com um animal diferente, pastando sobre a grama verde por entre as araucárias. Trata-se de uma raça chamada devon, um bicho cor de terra cuja introdução aconteceu em 1906. Sua chegada ao Brasil se deve ao lendário Joaquim Francisco Assis Brasil, político republicano aficionado pelo campo e o responsável pela introdução no País de raças como o gado jersey e ovelhas karakul. Diplomático, ele separava bem a política de suas amizades. Tanto é que presenteou o coronel Firmino Vieira Jacques, grande amigo, mas também adversário político, com um touro devon. Foi uma epopeia para o reprodutor chegar até o destino. O animal foi de trem até Bento Gonçalves (RS) e depois seguiu por terra até André do Rocha (RS). “Fizeram até botas para a caminhada não judiar o animal”, relembra Firmino Vieira Jacques, 88 anos, filho do coronel e criador de devon, raça que, um século depois, ganha espaço no Brasil.

Produção de a a Z: Cláudio Plácido Ribeiro e a filha Kátia são criadores de devon e fazem algo que hoje é raro na pecuária, o ciclo completo – cria, recria e engorda

Formada nos campos mais pobres da Inglaterra, a raça pode ser encontrada na Bahia e em Mato Grosso, Estados em que tem sido usada no cruzamento industrial. Apesar de possuir características semelhantes a outras linhagens, como o angus, pouco se ouve falar de devon no Brasil. “Para nós, criadores, é uma raça tão boa e produtiva que não pensávamos em marketing”, diz Reinoldes Cherubini, criador em Nova Prata (RS). Porém, uma pesquisa de opinião realizada pela Associação Brasileira de Criadores de Devon (ABCD) mostrou o erro. A partir daí, a entidade iniciou uma série de ações para reverter o quadro e mostrar que a criação deste animal exótico é, também, um bom negócio. “Estamos trabalhando em um selo de qualidade da carne para cortes especiais, que deve ser lançado no próximo semestre”, diz Elizabeth Cirne Lima, presidente da ABCD. No momento, a fase é de ajuste da cadeia. Um grupo de criadores está trabalhando na seleção de novilhos precoces, entre 20 e 24 meses, para garantir um rebanho homogêneo. Há também um frigorífico que irá fazer o manejo da carne de devon para assegurar a qualidade.

O Pioneiro: Jacques é filho do coronel Firmino Vieira Jacques, o precursor da criação de devon na região de Campos de Cima da Serra. O primeiro animal foi presenteado pelo lendário político Joaquim Francisco Assis do Brasil

Cláudio Plácido Ribeiro e a filha Kátia, criadores de devon em Camaquã (RS), são parceiros no novo projeto. É na fazenda da família que está sendo engordado o primeiro lote de novilhos que abastecerá o Restaurante Churrascaria Santo Antônio na Expointer, ocasião que será usada como teste comercial. Ribeiro, que herdou do pai o gosto pela raça, hoje tem um rebanho de 2.500 cabeças e faz a produção de ciclo completo, algo raro no Brasil: cria, recria e engorda. “Utilizamos o plantio de leguminosas após o arroz, o que forma uma pastagem excelente para o gado”, diz. Mas, apesar de a carne do devon não deixar a desejar para nenhuma outra, existe um certo preconceito por parte dos criadores tradicionais. O pai de Reinoldes Cherubini, Reinaldo Cherubini, um dos pioneiros no devon junto com coronel Jacques, foi um deles. Ouvira falar muito mal da raça e a evitou por muito tempo, até que fez um teste e comprovou o contrário. A propriedade da família, Fazenda São Valentin, tem hoje 150 animais Puro de Origem (PO) e coleciona troféus, entre eles três de melhor reprodutor do ano da raça. A explicação é um constante investimento em genética. “Estamos sempre utilizando sêmens de animais da Inglaterra e Nova Zelândia para renovar o sangue do rebanho”, diz Reinoldes.

200 mil cabeças é o tamanho do rebanho de devon no Brasil e 150 mil estão no Rio Grande do Sul

De Pai para Filhos e Netos: Reinoldes Cherubini herdou do pai, Reinaldo Cherubini, a paixão pela raça devon, que hoje é compartilhada pelos filhos. Da esq. para a dir., Rodrigo, Ronaldo, Reinoldes e Roberto

Agora, o plano da ABCD é levar a raça para além do Rio Grande do Sul. A estimativa da entidade é que, das 200 mil cabeças, 150 mil estejam em solo gaúcho. Embora já haja criadores em outros Estados brasileiros, eles estão muito pulverizados. Para mudar esta história, a associação está desenhando uma parceria com Olímpio Rossetti, banqueiro que é proprietário da empresa Rural Consult, conhecida por juntar dois protagonistas que até então não se falavam: pecuaristas e banqueiros. “A ideia é que ele leve o devon para os confinamentos no Brasil central”, diz Elizabeth.