10/08/2025 - 8:57
As duas maiores cidades brasileiras avançam em caminhos diferentes na abordagem dos serviços de transporte por aplicativo. Enquanto os riscos associados à vulnerabilidade da moto levaram São Paulo a proibir o serviço, o Rio de Janeiro quer que as plataformas uniformizem suas regras e apertem o cerco contra infrações de trânsito dos motociclistas. Na quinta reportagem da série Rota Perigosa: brasileiros se arriscam em motos por renda e mobilidade, a Agência Brasil compara os dois pontos de vista.
Desde o início de 2025, a prefeitura de São Paulo e as plataformas de aplicativos travam uma disputa judicial sobre a permissão do serviço na cidade. Enquanto as empresas recorrem a uma lei federal que, em seu entendimento, autoriza a prestação do serviço do país, a prefeitura editou um decreto municipal contra os mototáxis, justificando a decisão com os riscos aos usuários. Segundo a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), um sinistro de moto tem 17 vezes mais chance de ser letal na comparação com um automóvel.
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Em janeiro, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, chegou a afirmar que a plataforma 99 era ”assassina” e queria levar uma carnificina para São Paulo. Na época, a plataforma respondeu que o decreto que impedia o serviço era inconstitucional e que estava comprometida a promover viagens seguras.
“Nós não vamos permitir que essa empresa venha para cá e faça uma carnificina. São assassinos. Essas empresas são empresas assassinas e irresponsáveis. Elas não vão fazer na cidade de São Paulo aquilo que elas pretendem, só buscando lucro”, enfatizou Nunes.
Em junho, o governador paulista, Tarcísio de Freitas, sancionou uma lei que deu autonomia aos municípios para regulamentar o transporte individual de passageiros por meio de motocicletas. A prefeitura paulistana reforçou, então, que essa modalidade de transporte seguirá proibida enquanto o tema permanece em debate na Câmara Municipal.
“A lei sancionada pelo governo de São Paulo chancela o caminho tomado pela prefeitura no sentido de proibir o serviço de mototáxi na cidade. A administração municipal tem atuado fortemente para evitar que seja oferecido um modal de transporte que se prova perigoso diante de acidentes que resultaram nas mortes de passageiros”, disse a prefeitura.
Incentivo a motociclistas
A prefeitura do Rio de Janeiro, por sua vez, assinou um termo de cooperação com as principais plataformas de entregas e transporte para ter acesso aos dados, mapear os pontos críticos e propor um nivelamento das regras. O resultado deve ser divulgado ainda neste mês de agosto.
“Em breve, vamos anunciar medidas que igualam, nivelam, para que todos os aplicativos tenham o mínimo de regras”, disse o vice-prefeito Eduardo Cavalieri. “Como muitos deles [motociclistas] trabalham em diferentes aplicativos, a gente precisa que as regras sejam uniformes entre as plataformas, para que não haja incentivo a eles migrarem de uma para outra e para nenhuma plataforma se beneficiar por não estar cumprindo a regra.”
A prefeitura do Rio pretende construir pontos de apoio para entregadores e mototaxistas com apoio das plataformas e também ampliar as faixas exclusivas para moto em vias da cidade.
“A gente quer incentivar isso cada vez mais. Numa lógica de que são empreendedores que cuidam das suas famílias cada vez mais a partir do trabalho com as motos”, diz Cavalieri, que, apesar disso, reconhece que há uma epidemia de acidentes de moto na cidade, que viu o número de emplacamentos quintuplicar desde a pandemia.
Somente na rede municipal de saúde do Rio, de janeiro a junho de 2025, foram atendidas 14.497 vítimas de acidentes com moto em hospitais de urgência e emergência. Isso significa que cerca de 80 atendimentos foram realizados por dia na cidade.
Na última sexta-feira (1º), o Hospital Municipal Barata Ribeiro, unidade referência em ortopedia, recebeu o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que anunciou um reforço para triplicar a capacidade de cirurgias, atendimentos e exames, com o programa Agora Tem Especialista.
Jovens de comunidades
Segundo o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, a prefeitura gasta mais de R$ 130 milhões por ano para realizar os atendimentos de vítimas de colisões, atropelamentos e quedas de motocicletas. O perfil mais comum entre essas vítimas é homem, jovem de 23 a 33 anos e morador de comunidades. Já o período em que mais acontecem os incidentes é das 7h às 9h, no deslocamento para a rotina diária.
O perfil tem semelhanças com o observado nacionalmente. Segundo dados do Sistema de Informações de Mortalidade, entre 2010 e 2023, 56,5% das mortes em sinistros com motos foram de jovens de 20 a 39 anos. Cerca de 70% tinham menos de 11 anos de estudo, o que significa que não concluíram o ensino superior, e 61,2% eram negros.
Em relação ao ano de 2024, o Ministério da Saúde conduziu um estudo que contou com 42 mil entrevistas em unidades de pronto atendimento e emergências do país, o Viva Inquérito 2024. Segundo dados preliminares apresentados na Conferência Nacional de Segurança no Trânsito, uma em cada cinco vítimas do trânsito era trabalhador de aplicativos.
Tragédia anunciada
Para o técnico de pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e doutor em engenharia de trânsito Erivelton Guedes, a disseminação dos serviços de transporte de passageiros por motociclistas de aplicativos é uma tragédia anunciada e sua regulamentação não deveria ser considerada pelas autoridades pelos riscos para a saúde que ela representa
“Qualquer regulamentação vai acabar incentivando e, talvez, dando a falsa impressão de que, seguindo aquele monte de regras, vai dar certo”, diz.
Guedes foi um dos responsáveis pela inclusão das mortes no trânsito no Atlas da Violência 2025. Segundo o atlas, “o usuário da motocicleta é, atualmente, a maior vítima dos sinistros de trânsito no Brasil”. Entre 2019 e 2023, o número de vítimas de sinistros com motos subiu de 11.182 para 13.477.
O oficial técnico em segurança viária e prevenção de lesões não intencionais da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) no Brasil Victor Pavarino acredita que é preciso desincentivar a troca do transporte público pelo transporte individual motorizado por meio de medidas medidas de impacto coletivo, como a ampliação do transporte público, a adoção de tarifa zero e o encorajamento dos deslocamentos por caminhada e bicicletas, por meio de cidades mais convidativas ao pedestre e ao ciclista.
“De certa forma, o que está ocorrendo com a moto é que um imenso segmento da população, não só do Brasil, está recorrendo a uma possibilidade de mobilidade que lhes foi negada durante décadas”, pondera Pavarino.
“É difícil a gente falar que não se pode ou não se deve usar motos, enquanto, em muitos casos, como em favelas, ela é a única forma que boa parte da população tem para chegar até sua casa e como ganha-pão”, acrescenta o especialista em segurança viária.
Para o diretor do Sindicato dos Empregados Motociclistas do Estado do Rio de Janeiro (Sindmoto-RJ), Alfredo Barbosa de Lima, é preciso reforçar a educação para a segurança no trânsito de motociclistas e passageiros de mototáxis.
No entendimento dele, isso implica facilitar o acesso à Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e elaborar orientações específicas para que os caronas saibam como se portar na moto sem atrapalhar os condutores.
“Eu já sofri 17 acidentes de motocicleta. Então, eu percebi que as orientações contra acidentes de motocicletas são muito básicas e não são o suficiente”, afirma ele, que, ao longo de oito anos, elaborou uma cartilha divulgada pelo sindicato da categoria. “É preciso ter um curso de direção defensiva que não reprove ninguém. O domínio da moto você ganha com o tempo.”