29/01/2019 - 15:50
O frigorífico Cowpig, em Boituva, município a cerca de 120 quilômetros de São Paulo, abate bovinos, suínos, ovinos, caprinos e bubalinos desde 1998. E manipula a carne de maneira quase artesanal, como se fosse uma boutique. Como ocorreu no mês passado, quando o frigorífico abateu pela primeira vez um animal da raça araguaia para marcar o início de uma parceria que começou a nascer em julho: o projeto da marca Origem. Desmontada em corte, a carne foi preparada pelo professor de gastronomia e chef de cozinha Paulo Fernandes da Silva, da Universidade Toledo, de Araçatuba (SP). E foi servida de várias maneiras, como tartar, alcatra em rosbife e defumada, filé mignon, picanha, contra-filé e costela, a um grupo de convidados do criador Raul Almeida de Moraes Neto, da fazenda Santa Rita, em Torixoréu, município mato-grossense a 560 quilômetros de Cuiabá. “Nós criamos animais que possuem uma carne com baixo teor de gordura, com sabor e maciez”, diz Moraes Neto. “É com ela vamos formar um mercado.”
A disposição do frigorífico para entrar na parceria de uma nova marca de carne faz parte da estratégia da empresa e salva um tipo de negócio difícil de ser colocado em prática. Isso porque não basta criar uma marca de carne, é preciso vender em pontos identificados com o produto. É esse o conceito que os irmãos Sebastiani, fundadores da CowPig, tem fixado. O serviço artesanal de preparação de cortes dá conta de cerca de 140 mil animais abatidos por ano.
O volume é muito pequeno se comparado, por exemplo, a grupos como o Minerva Foods, que abate essa mesma quantidade em uma semana. Mas os Sebastiani são muito espertos, de olho em oportunidades. Eles abastecem nichos altamente agregadores de valor, como os restaurantes da rede Rubaiyat e ºDinho’s Place, com especialistas em cortes de carne que interferem na linha de processamento do frigorífico. “Eles dizem quantos centímetros querem em um corte, de que maneira cortar a carne e nós fazemos”, diz José Ovídio Sebastiani, 66 anos, um dos três irmãos que criaram a empresa.
A marca Origem nasce estruturada já com um grupo executivo à frente, coordenada pelo veterinário e consultor Alexander Estermann, com experiência em empresas como BRF, ainda na época da Sadia, Petropar Group e grupo Roncador. Além de um geneticista, o veterinário Gismar Silva Vieira para ajudar a desenhar a expansão da raça, estão na equipe dois publicitários com a missão de construir o conceito da marca e fazer com o que o consumidor se integre aos processos, como a rastreabilidade através de um QR Code. Se em outros projetos da empresa os parceiros Eduardo Ferrareze e Guilherme Nogueira, da agência Zeca Consoni, são só prestadores de serviço, na marca Origem eles são sócios. “Quando o Estemann entrou em contato pensei que era mais do mesmo, porque vem muito aventureiro propor negócio. Mas não com uma raça e por isso marcamos uma conversa”, diz Renato Sebastiani, herdeiro e diretor comercial do CowPig. “Estermann chegou no frigorífico com toda a equipe e mostrou um trabalho bem avançado. De marketing à produção. E compramos a ideia.”
A meta para a marca Origem é abater 12 mil animais em 2022. São mil bovinos por mês, com 200 toneladas de carne no mercado. A preparação será neste ano, com 100 animais abatidos, e em 2019, com 240 animais abatidos. O desafio de dar o salto de produção em dois anos começa ser estruturado. A ideia é formar dois grupos: um produtor de genética araguaia e outro produtor de animais para abate. “O desafio da raça é sair de dentro da fazenda Santa Rita para fazer volume e ganhar variabilidade genética”, diz Estermann.
O núcleo de genética, com dez produtores, será formado em cinco regiões: no Vale do Araguaia e em Rondonópolis (MT), mais uma em Goiás e duas em São Paulo, nas imediações do frigorífico e nas proximidades do município de Presidente Prudente. O plano é vender até mil touros a partir de 2023. No núcleo de produção a meta são 30 produtores com um rebanho total de 25 mil fêmeas na reprodução. São eles que vão criar animais puros ou cruzados, jovens e terminados com suplementação em piquetes ou confinamento.
O volume de fêmeas não é alto, se comparado ao de grandes grupos pecuários. Somente a Roncador tem 20 mil fêmeas. “O desafio é estabelecer um grupo, porque assim a gente preserva a raça e dá estabilidade ao mercado”, afirma Estermann. “E se não determinarmos uma geografia, não conseguiremos fazer uma boa gestão do programa.” Para isso, no mês passado também foi iniciada a coleta de 2,4 mil embriões da raça e a produção de 10 mil doses de sêmen. Esterman diz que a referência de mercado é a marca de carne da raça hispânica rúbia gallega, criada pelo do Pão de Açúcar há 15 anos. Os integrados abatem 80 mil animais. Já a referência de que o CowPig pode desbravar o mercado é a marca da raça wagyu KenStar, que pertence a Renato Kenji Nakaya, um dos herdeiros da marca Sakura. A parceria já dura quatro anos e começou como o abate de dois animais por mês, hoje são 30 animais com peças de carne cotadas por até R$ 300 o quilo. “Vejo a Origem como um nicho, mas bem maior e diferente, atraindo um consumidor que paga R$ 60 pelo quilo de carne”, diz José Eduardo Cocco Carvalho, diretor comercial da CowPig. “Nós gostamos do diferente e de trabalhar com nichos das classes A e B.” Para ele, é justamente aí que o público busca por carne mais magra, sem abrir mão da maciez.
Bovinos da raça araguaia não são propriamente uma novidade nos pastos. Formada pela raça brasileira caracu e a francesa Blonde D´Aquitaine, esse tipo de cruzamento começou a aparecer nos anos 1990, no Rio Grande do Sul. Em meados dos anos 2004 estava na região de Londrina (PR) e daí subiu para o Centro-Oeste. Moraes Neto, que até 2008 criava nelore, passou a se dedicar a esse tipo de gado com grau de sangue em 3/8 caracu e 5/8 blonde d´aquitaine. E começou uma jornada em busca de um fenótipo de animal. Em 2011, o criador registrou uma patente no Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual e em 2013 fez o primeiro registro de um animal da raça na Associação Brasileira de Criadores de Zebu. O fato é inédito, porque as duas raças que formam a araguaia não são de origem zebuína, elas são taurinas europeias. Mas o registro na entidade abre a possibilidade de reconhecimento do Ministério da Agricultura e Pecuária. “São 20 anos de registro para que isso aconteça”, diz Moraes Neto. A Associação Brasileira da Raça Araguaia, que nasceu em 2010, tem 15 associados em Mato Grosso, embora nenhum crie a raça pura. Eles são usuários de touros araguaia em vacas nelore.
O rebanho da fazenda Santa Rita tem 500 animais registrados, dos quais 400 são fêmeas, e outro tanto sem registro. O foco do trabalho de seleção genética é a produtividade. Na análise de genes, a busca é por animais que tenham caseína do leite, calpaína e capastatina. Para entender o que elas significam é preciso voltar às aulas de genética. A caseína, uma proteína do leite rica em fósforo, aumenta a sua qualidade e o peso de desmama dos bezerros. Na fazenda, as vacas araguaias produzem até seis litros de leite por dia, o dobro de algumas nelore comuns que ainda estão nos pastos. Também é acompanhado o grau de calpaína e de calpastatina, enzimas que atuam após o abate do animal, influenciando no mecanismo de amaciamento natural da carne.
Outro trabalho é buscar por fêmeas com mais características da raça caracu e machos com mais características de blonde d´aquitaine. Isso porque a raça francesa possui uma dupla musculatura traseira, o que nos machos significa rendimento de carne, mas nas fêmeas pode gerar alguma dificuldade de parto. “Nas fêmeas trabalhamos os genes para miostastina de forma mais branda, justamente para facilitar o parto”, diz Moraes Neto. A miostatina é uma proteína que regula negativamente o crescimento da massa muscular. “Isso tudo influência nas qualidades da carne, principalmente no sabor e na maciez.” Para o professor de gastronomia Silva, da Universidade Toledo, o trabalho parece que caminha na direção certa. Silva é um estudioso das diferenças físicas da carne e como os hábitos influenciam na escolha do consumidor. “Essa geração não precisa mais de tanta gordura na alimentação, como os seus avós”, afirma Silva. “Há uma mudança de hábito alimentar na qual a raça araguaia se encaixa.” As análises comparativas da raça mostram uma inserção menor de gordura e carne macia e com suco. “Ela tem um sabor marcante e ao mesmo tempo delicado. Em algumas degustações já houve até relato de sensações comparadas à carne de atum.”