” O mercado de leite fluido no Brasil passa por uma crise de credibilidade ” IVAN ZURITA

T ente se lembrar da marca de leite que você levou para casa na última ida ao supermercado. É provável que não seja a mesma da compra anterior. Num setor extremamente pulverizado, em que milhares de empresas disputam a preferência dos clientes fazendo guerra de preços e muitas vezes abrindo mão da qualidade, desapareceu a fidelidade do consumidor. Com preços aviltados, não só para as empresas como também para os produtores, o mercado se transformou numa espécie de terra arrasada. Foi essa a percepção de um empresário, ao empurrar o carrinho de compras num corredor de supermercado. Era ninguém menos que ivan Fábio Zurita, presidente da Nestlé, uma empresa com receitas de R$ 15 bilhões no Brasil e que já é a maior captadora de leite do País com dois bilhões de litros, mas que, até agora, ainda não havia entrado no mercado de leite fluido – a empresa é líder absoluta em produtos como leite em pó, leite condensado e creme de leite. “Percebi que não podíamos mais ficar de fora”, disse Zurita à DiNhEiRO RURAL. Logo que voltou ao escritório, ele acelerou os planos para que a empresa começasse a produzir uma de suas principais marcas – o Ninho – na forma líquida. Para o mercado voltado para consumidores de produtos com menos gordura, a marca Molico foi a escolhida. O que se espera, com a chegada do gigante, é uma verdadeira revolução no mercado brasileiro. “Queremos ser líderes e não criamos um novo negócio aqui dentro para não faturar, ao menos, R$ 1 bilhão por ano”, avisa Zurita (leia sua entrevista à página 42).

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As primeiras caixas de Ninho começaram a chegar aos supermercados no início deste mês. Toda a produção está sendo feita numa fábrica da antiga Shefa, na cidade de Amparo, no interior paulista. Uma parte da empresa trabalha com exclusividade para a Nestlé a fim de evitar contato com qualquer outro produto cuja procedência não seja conhecida. Lá, milhares de produtores fornecerão cerca de 250 milhões de litros para a Nestlé, anualmente. Para que se tenha ideia do que isso representa, toda a operação da Danone no Brasil capta 241 milhões de litros de leite ao ano. A quantidade proposta pela Nestlé equivale a 5% de um mercado de cinco bilhões de litros. No campo, levando-se em consideração os valores pagos aos fornecedores e a quantidade de leite envolvida nesta nova ação, cerca de R$ 190 milhões chegarão aos bolsos dos produtores.

Preocupada em garantir a qualidade, a empresa já tomou uma decisão até mais radical do que a sua própria entrada neste mercado – todo o leite das marcas Ninho e Molico poderá ser rastreado pelos clientes, da gôndola do supermercado até a fazenda. Esse rigor também beneficia os produtores. Ao vender para a Nestlé, o fazendeiro tem a possibilidade de ampliar seus ganhos, recebendo por qualidade, conforme explica o produtor Acir Pelielo, de Buritama, em São Paulo. “Recebi da Nestlé este mês R$ 0,76 por litro de leite – sem os bônus por qualidade e quantidade de proteína e gordura, o preço cairia para R$ 0,60”, diz, apontando uma diferença de 26% ante o resto do mercado. O fato de ser um fornecedor Nestlé também confere status aos produtores. “Sou assediado por outras empresas que querem meu leite porque sabem que forneço para a Nestlé e até oferecem mais dinheiro, mas, como não são tão idôneas e não são regulares, prefiro manter o meu contrato e ganhar ao longo do tempo”, explica Pelielo. Ele é dono do Sítio Vovó Cida, com 100 matrizes em lactação e produção de 1.900 litros ao dia. “Vamos chegar a cinco mil litros”, revela. Agora, ele está investindo em genética para melhorar o seu rebanho. “Mandei embora 50 matrizes que estavam dando problema de mastite no leite. Agora minha produtividade vai subir.”

Essa nova decisão da Nestlé, de entrar no mercado de leite fluido, foi tomada por um executivo cuja história se confunde com a da própria empresa no Brasil. A multinacional suíça chegou ao Brasil em 1921 e instalou-se na cidade de Araras, no interior de São Paulo. Curiosamente, foi lá que o pai e o avô de Zurita nasceram. “Na minha infância eu me lembro de passar perto da fábrica e sentir o cheiro do Milk Maid”, recorda ele. Essa marca depois virou Leite Moça e se transformou num dos maiores sucessos da história da indústria alimentícia no Brasil. Fazendeiros, os pais do chefe da Nestlé chegaram a fornecer leite para a empresa e durante cinco anos o próprio Zurita tocou a propriedade. Aos 12, já cuidava de um negócio com 500 vacas que produziam 12 mil litros de leite ao dia. E para que a história ficasse perfeita, o primeiro e único emprego do empresário foi na multinacional suíça, onde ele entrou com 17 anos, em 1973. Desde então, ele passou por todas as áreas da empresa e por diversos países até chegar à presidência no Brasil. Foi promotor de vendas, gerente de produção, trabalhou no México, na Argentina e no Uruguai. Durante dois anos, na própria Suíça. “Mudei várias vezes de emprego aqui dentro”, diz.

Nesses anos todos um detalhe, porém, o incomodava: a Nestlé, maior empresa de leite do mundo, não vendia um litro do seu principal produto na forma fluida. “Envasar leite é fácil, o problema é agregar valor a um produto de qualidade e oferecer ao consumidor por um preço justo, mas acima da média”, afirma Zurita. O leite vendido no supermercado com as marcas Ninho e Molico tem um preço sugerido em média 20% acima dos concorrentes. Para o professor da Universidade Federal de Viçosa, Sebastião Teixeira Gomes, há espaço de sobra para a tacada de Zurita. “Existe uma deficiência de marcas premium para o grande público, porque é um erro pensar que as classes menos favorecidas não estão dispostas a pagar um pouco mais por um produto diferenciado”, avalia. Com o uso de alta tecnologia na produção, ele diz ser possível fabricar qualquer tipo de leite, com sabor, textura, gordura, proteína e vitaminas, tudo controlado. “Por isso, uma empresa que pretende captar um leite de qualidade, deve pagar mais por isso”, afirma Gomes.

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Ao longo dos anos, manter diferenciais que agreguem valor aos produtos que vende se tornou uma obsessão para Zurita. Como fazendeiro, o empresário aplica a mesma regra. Sua empresa rural, a AgroZurita, mantém uma fábrica de cachaça, uma linha de carnes, produção de laranja para fins industriais e a criação de gado de elite com as raças simental e nelore. Em sua propriedade, na cidade de Araras, ele emprega cerca de 125 funcionários, divididos em 40 famílias, que cuidam de seus mil hectares. Somando todos os negócios do campo, a AgroZurita fatura R$ 70 milhões ao ano. “Sempre digo que meu ganha pão está fora da fazenda, mas é importante para a cidade e para as pessoas da região que haja fazendas fortes, produzindo qualidade, e tudo aqui é feito na ponta do lápis”, explica. A própria fazenda de Zurita, uma propriedade histórica de mais de 200 anos, serve como um modelo de produção e sustentabilidade. Não há bomba elétrica e toda água é movimentada por gravidade, além de os pomares serem adubados com material orgânico retirado da pecuária. Para incentivar o cuidado dos funcionários com suas casas, ele realiza um concurso anual para premiar o jardim mais bem cuidado. “Só não pode deixar lixo no chão e mexer nas matas, o resto está à disposição de todos”, diz. Isso inclui um lago com peixes para consumo e uma grande horta mantida pelos próprios moradores. “Aplico aqui o mesmo rigor de qualidade que temos na Nestlé, só não trabalho com leite porque seria um claro conflito de interesses ser um fornecedor, e vender para a concorrência é algo absolutamente impensável”, brinca.

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Contudo, Zurita acredita que o mercado de genética para gado leiteiro tem pela frente um grande futuro. Como exemplo, ele destaca os altos preços de animais da raça gir leiteiro, nova coqueluche no roteiro dos grandes leilões. “Sou criador de simental, que também é usado para rebanhos leiteiros e vejo um mercado muito promissor para os próximos anos.” Isso porque, de acordo com o presidente da Nestlé, em poucos anos o Brasil será o único país do mundo a ter capacidade de ampliar as exportações de leite. Hoje, os embarques se resumem a meros 3% de tudo o que é produzido.

“O Brasil necessita aumentar a produtividade e para isso a genética é importantíssima”, explica o presidente da Leite Brasil, Jorge Rubez. Segundo ele, falta vontade política para resolver problemas como a entrada de leite em pó da Argentina, vendido com preços subsidiados pelo governo do país vizinho. “Também é preciso baixar os impostos sobre a produção e, claro, melhorar a qualidade”, avalia. Nesse ponto, acredita Rubez, é fundamental que programas que paguem por qualidade, a exemplo do que faz a Nestlé, sejam cada vez mais frequentes no País. No que depender de Zurita e da pressão que tem feito em relação às necessidades de desoneração fiscal e incentivo à produção, o Brasil se tornará um grande exportador de leite e com muita qualidade. “Ainda vamos brindar a isso”, diz. Com leite, que fique bem claro.

“Vamos ajudar o produtor de leite”

O presidente da Nestlé explica como será a estratégia da empresa e a relação com fornecedores

Ivan Zurita explica como a rastreabilidade vai funcionar nas linhas de leite fluido e que tipo de vantagem terão os produtores mais bem organizados

Dinheiro Rural – A Nestlé vai mesmo rastrear o leite até a embalagem? Ivan

Zurita – Sem dúvida. Nossa rede de fornecedores é 100% rastreada desde a coleta na fazenda, passando pelos caminhões tanques até o recebimento nas fábricas. Isso nos permite informar de que propriedade aquele leite está vindo.

Rural – Isso já está em funcionamento?

Zurita – Parcialmente sim. Estamos rastreando até a região. Mas neste mês nossos consumidores já contarão com todas as informações.

Rural – Os produtores reclamam de preços baixos. O que pode ser feito?

Zurita – Incentivamos os pecuaristas a melhorar sua produção, porque dessa forma eles recebem mais. Na média, pagamos bem acima do mercado e queremos pagar sempre mais.

Criador: Ivan Zurita é um dos principais selecionadores de gado simental no Brasil

Rural – Por que a empresa demorou tanto para entrar nesse mercado?

Zurita – Não queremos embalar leite. Isso qualquer um faz. Para ser um produtor Nestlé, o alimento tem de agregar valor e foi isso que fizemos. Tanto na linha Ninho quanto na Molico, adicionamos vitaminas e controlamos desde o sabor até as taxas de gordura e proteína, para que o consumidor tenha um produto seguro.

Rural – Então não é o mesmo leite que vocês captam…

Zurita – Com a tecnologia disponível hoje é possível fabricar o leite que você quiser. Mas isso só é possível tendo uma boa rede de fornecedores. Não aceitamos erros ou enganos. Caso aconteça de um fornecedor tentar enganar a empresa adicionando substâncias ao leite, ele será eliminado para o resto da vida e nunca mais entregará para a Nestlé. E só recolhemos aquele leite que está absolutamente dentro dos testes de acidez, entre outros que fazemos antes da entrada em nosso sistema.

Rural – Mas há sempre muita reclamação nesse setor…

Zurita – Assim como aconteceu com a carne e outros produtos, o Brasil será o maior exportador de leite do mundo. Temos que parar de ter medo dos concorrentes e nos colocarmos no mercado internacional, com o incentivo de acordos bilaterais com os grandes mercados. Isso eu disse pessoalmente ao presidente Lula.

Rural – Faturar R$ 1 bilhão é realmente uma meta viável na venda de leite?

Zurita – Não fazemos nenhum negócio que fature menos que R$ 1 bilhão. Entramos nesse mercado para liderar, até porque existe um espaço muito grande. Nossa meta é alcançar 5% de um total de cinco bilhões de litros. Isso nos daria a liderança e um faturamento que justifica os investimentos realizados até agora, desde as adaptações de operações até o desenvolvimento dos produtos, pesquisas e lançamento.

Rural – Na prática, o que o produtor ganha com essa tacada da Nestlé?

Zurita – Primeiramente teremos de ampliar nossa captação, que já é a maior do Brasil. Vendendo mais, eles ganham mais. Além disso, acredito que é um passo importante na direção da busca de um produto de qualidade. Quem quiser qualidade vai ter de pagar por isso e o maior beneficiado é produtor mais especializado.