08/08/2020 - 12:52
Na sessão de quarta-feira passada, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, decidiu obrigar o governo Jair Bolsonaro a adotar medidas de proteção dos povos indígenas contra a covid-19, que ameaça aldeias desde o início da pandemia do novo coronavírus.
Mais do que uma vitória dos povos indígenas e uma derrota do governo, a decisão do Supremo foi recebida como uma conquista histórica. Pela primeira vez, desde a criação do tribunal, um advogado autodeclarado indígena venceu uma ação de jurisdição constitucional na Corte. Luiz Henrique Eloy Amado, ou Eloy Terena, de 32 anos, nasceu em uma aldeia da etnia terena em Aquidauana (MS) e foi o responsável pela Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) que garantiu a decisão favorável.
Esta ADPF é a voz dos povos indígenas nesta Corte. É o grito de socorro dos povos indígenas. Esta iniciativa é uma ação histórica, pois, pela primeira vez no âmbito da discussão constitucional, os povos indígenas vêm ao Judiciário em nome próprio, por meio de advogado próprio, defender o direito próprio, disse o advogado ao iniciar sua fala na sessão que reuniu nove dos 11 ministros do Supremo.
Na audiência virtual, Terena, que representava a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), fez a defesa oral de Paris, onde cursa pós-doutorado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da França.
O caminho até a mais alta Corte do País foi cheio de percalços, segundo ele. A mãe de Terena, Zenia, se separou do marido e se mudou para Campo Grande para que os filhos tivessem mais oportunidades.
Na época, as opções na aldeia eram estudar fora ou ir cortar cana, mas só os filhos dos caciques tinham oportunidade de estudar, lembrou o advogado. Trabalhando como faxineira, relatou, Zenia conseguiu sustentar a família na capital sul-mato-grossense e formar dois filhos advogados – Eloy Terena e a irmã, Simone.
Bolsa
Depois de estudar em colégios públicos, Terena passou no vestibular para Direito na Universidade Católica Dom Bosco e ganhou uma bolsa integral por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni). Estimulado pelo historiador Antonio Brandi, seu professor, foi conhecer a realidade de outros povos indígenas do Estado, como os guaranis-caiovás. Era uma realidade diferente da do meu povo que mal ou bem tem as reservas demarcadas. Os guaranis-caiovás moravam acampados na beira da estrada, não tinham nada.
A partir dali, Terena começou a se interessar pelo Direito ligado às causas indígenas. Tive que estudar tudo. Não tínhamos a disciplina ‘Direito Indígena’. Em seguida, fez mestrado na mesma universidade. Na defesa da tese, Terena relatou que enfrentou as primeiras hostilidades. Ele escolheu fazer a defesa em sua aldeia, em Aquidauana. A universidade aceitou. Mas, de acordo com ele, fazendeiros entraram com ação na Justiça para impedir a apresentação. Ele disse que, embora tenha ganhado a ação, os integrantes da banca examinadora não apareceram. Depois soube que eles sofreram ameaças, afirmou.
Terena relatou que ele próprio sofreu ameaças, na época em que atuou como advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), na defesa de índios alvo de ações de reintegração de posse. Ser liderança indígena naquela região de conflitos já é um risco. Ser indígena e advogado que coloca para o exterior aquela realidade é ato de coragem, disse o secretário executivo do Cimi, Antonio Eduardo Cerqueira de Oliveira.
‘Exílio’
Foi depois de ganhar uma bolsa de pesquisa no Museu Nacional que Terena partiu para o exílio no Rio, onde fez doutorado. Mesmo distante de Mato Grosso do Sul, ele disse que continuou sofrendo agressões. Em 2014, foi indiciado em uma CPI da Assembleia Legislativa por supostamente incitar retomadas de terra.
Para o líder indígena e escritor Ailton Krenak, mais do que uma vitória pessoal de Terena, o ganho do advogado no Supremo representa a ascensão de uma geração de jovens lideranças indígenas que saíram das aldeias para estudar e trabalhar, mas que, diferentemente de gerações anteriores, deu continuidade às causas dos povos. É mais sobre a geração do que sobre a pessoa dele. É uma geração que estudou com os brancos, mas soube continuar a luta de seus tios, pais e avós, disse Krenak.
Para ele, isso está associado ao novo papel que os indígenas ganharam na sociedade a partir da Constituição de 1988, ano em que Eloy Terena nasceu. A capacidade de adquirir conhecimento técnico é algo que não se espera de nós, afirmou a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR). Joenia, que conhece Terena desde a faculdade, foi a primeira advogada indígena a vencer uma ação no Supremo no caso emblemático da reserva Raposa/ Serra do Sol (RR), em 2009. Aquele processo, no entanto, não era de jurisdição constitucional.
A sustentação oral feita por Eloy, na quarta-feira, foi motivo de elogios por parte de um ministro do STF. Ele gastou apenas nove dos 12 minutos aos quais tinha direito. Durante muitos séculos a qualidade de sujeito ativo de direito nos foi negada. Foi somente na Constituição de 1988 que pudemos estar em juízo defendendo seus direitos, afirmou, na sessão do Supremo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.