03/04/2019 - 16:26
O rompimento de uma barragem de rejeitos da exploração de ferro da mineradora Vale, no município mineiro de Brumadinho, região montanhosa próximo de Belo Horizonte, não tirou somente vidas humanas no rastro de lama que escorreu morro abaixo, levando tudo o que encontrava pela frente. No fatídico início da tarde do dia 25 de janeiro também estavam no olho do furacão da tragédia animais agoniados e atolados no lamaçal – como o tourinho da raça nelore na foto acima –, vacas leiteiras rodopiando em águas turvas e bezerros se afogando, cães em desespero, galinhas e porcos se debatendo na tentativa de escapar da morte iminente e um rio em colapso, o Paraopeba, nome da língua tupi que significa mar plano. O rompimento da barragem da Vale, a maior produtora global de minério de ferro – que fatura na ordem de R$ 110 bilhões anuais e emprega cerca de 73,5 mil funcionários –, provocou uma destruição gigantesca: flora silvestre e fauna nativa desapareceram em questão de minutos e é incalculável as perdas com o cultivo de lavouras e com a criação de animais, base do sustento de muitas famílias da região.
São produtores de hortifrutis, como cenoura, tomate, brócolis e folhosas de vários tipos de alface, couve, rúcula entre outros, que abastecem sacolões e o Ceasa da capital mineira. Também há produtores de leite,
praticamente todos de vacas cruzadas da raça girolando, criadas no pasto, e atividades de subsistência, como a criação de aves e suínos. Somente na pecuária, a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é de que haja no município cerca de 15 mil bovinos, dos quais 3 mil são vacas leiteiras. Animais, inclusive domésticos, esperaram dias para serem resgatados. Muitos foram abatidos no local. “O desastre apenas começou”, diz a economista Fabiana Ferreira Alves, porta-voz do Greenpeace no Brasil, organização ambientalista presente em 41 países. “É um dos maiores impactos ambientais e sociais, pelo número alto de mortes nesse caso, o que é muito triste”.
Poucos dias após o desastre, a tragédia humana dava o tom da gravidade do ocorrido no córrego do Feijão, local do rompimento da estrutura onde estavam 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Entre mortos e desaparecidos, a estimativa era de cerca de 360 vítimas, sendo a maior parte funcionários da Vale. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, instituição da ONU com sede na Suíça, o desastre de Brumadinho já é considerado um dos maiores acidentes de trabalho da história do País e o maior dos últimos 10 anos em todo o mundo.
No campo, a lama da barragem desceu por cerca de oito quilômetros sobre o leito do rio Paraopeba. Segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), baseado em imagens de satélite, a lama soterrou 204 hectares, dos quais 133,3 hectares eram de vegetação nativa de Mata Atlântica e 70,7 hectares de Áreas de Preservação Permanente (APPs). É onde estão os rejeitos e a morte física do meio ambiente. Mas seus efeitos devem se espalhar por pelo menos 20 municípios por onde corre o Paraopeba. Hoje, é impossível o uso da água para irrigação e o seu fornecimento aos animais. Primeiro pela turbidez, em função dos metais em suspensão, e depois pela deposição no leito do rio, levando insegurança para o seu uso. A chamada pluma (mistura de água e rejeitos da barragem) detectada rapidamente em pelo menos 200 quilômetros de leito do rio deve ser monitorada nos próximos anos. A suspeita imediata após o desastre é que haja no derramamento de lama de Brumadinho metais pesados, como o mercúrio e o chumbo. Em diferentes graus de toxicidade, em grandes quantidades esses elementos podem provocar doenças em humanos e animais.
Mesmo não sendo conclusivos, alguns estudos dão conta de que não é o caso da lama proveniente de outro rompimento de barragem ocorrido em novembro de 2015, no município de Mariana, a apenas 130 quilômetros de Brumadinho, fruto de erros de gestão do negócio da mineradora Samarco, controlada pela Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. No desastre de Mariana, embora tóxico pela presença de ferro e manganês, com imensos impactos em vários ecossistemas que levarão dezenas de anos para serem minimizados, não havia os tais metais pesados em altos volumes na composição dos rejeitos (leia quadro ao lado).
socorro “Os animais precisam de água potável, de imediato através de caminhões pipa, e, para um futuro breve, a perfuração de poços artesianos seria uma das soluções”, diz Leonardo Kalil, diretor da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG), que trabalha em parceria com a Empresa de Pesquisa Agropecuária (Epamig) e com o Instituto Mineiro de Agropecuária (Ima). Logo após o desastre foram destacados 40 técnicos para o levantamento dos estragos provocados ao meio ambiente e aos produtores. “Com eles, será elaborado um plano de retomada da atividade agropecuária na região”, afirma Kalil . Nesse movimento também está a Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg), contabilizando prejuízos e iniciando as discussões de como serão reparados. “Os produtores e trabalhadores rurais não podem ficar desamparados”, diz Vilson Luiz da Silva, presidente da Fetaemg. “A Vale precisa pagar pelo estrago.” Após uma semana do desastre, a ideia era de que pelo menos 180 produtores estavam com suas lavouras comprometidas apenas em Brumadinho, mas esse é um número que pode ser triplicado com os produtores dos outros municípios que dependem do rio Paraopeba para as suas atividades, entre ele Esmeraldas, Inhaúma, Juatuba, Papagaios. São pequenas comunidades e nomes desconhecidos para a maior parte da população brasileira.
Mas o desastre no córrego do Feijão, que deságua no Paraopeba e que por sua vez vai ao rio São Francisco, um dos principais cursos d’água do País, pode escrever outra história daqui para a frente. A onda de lama e de mortes em Brumadinho fez crescer na opinião pública um sentimento de traição por parte da Vale e do governo, com regras e fiscalização deficientes e suspeitas de corrupção. O sentimento é de crime ambiental e não um desastre, inclusive fora do País. Redes de comunicação, como o jornal inglês The Guardian, o espanhol EL Pais, o francês Le Monde e os americanos The New York Times e The Washington Post não pouparam ácidas críticas ao ocorrido. Estava escrito no The New York Times, um dia após a tragédia: “para muitos brasileiros, essa última advertência foi uma evidência maior de que o sistema da indústria de mineração está quebrado, arriscando as vidas das pessoas e colocando em risco o meio ambiente”.
No dia do mar de lama sobre Brumadinho, o presidente da empresa, Fabio Schvartsman, iniciou uma entrevista coletiva dizendo “é com enorme pesar que a gente relata o que aconteceu, estou dilacerado.” Mais do que ele, o País está dilacerado e espera por justiça. Para Fabiana Alves, do Greenpeace, falta transparência nas políticas da Vale. “A Organização das Nações Unidas já publicou um relatório sobre a falta de segurança em suas barragens”, diz ela. “São exatamente 167 barragens no País com alto risco de rompimento e que queremos ver paralisadas.”
Não por acaso, há um movimento de pressão sobre o governo do novo presidente Jair Bolsonaro, que prometeu durante a sua campanha restringir punições e facilitar regulações sobre a mineração e outras indústrias que exploram fontes naturais. Procurado pela DINHEIRO RURAL, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não quis se manifestar. Mas, em entrevistas coletivas, ele vem tentando esclarecer o significaria afrouxar regras para situações de baixo risco ambiental, como em áreas de pastagens, por exemplo. O fato é que ainda há muito a ser esclarecido na tragédia de Brumadinho, já que a atividade de mineradora é uma das principais fontes de receita nas exportações do País. Minas Gerais é o mais importante Estado desse setor, com produção de cerca de 180 milhões de toneladas/ano de minério de ferro, algo em torno de 30% do total. Das 100 maiores minas brasileiras, 40 estão no estado, com produções superiores a 3 milhões de toneladas anuais. Apenas como Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o setor movimentou R$ 3 bilhões em 2018, valor 66,6% acima de 2017. Em Brumadinho foram R$ 62,5 milhões arrecados. Só para comparação, o ferro está para o setor de mineração como a soja para o agronegócio. No ano passado foram exportados US$ 29,9 bilhões em minérios, 5,2% acima de 2017. Desse total, US$ 20,2 bilhões foram de ferro, seguido por ouro, ferronióbio e cobre, com cerca de US$ 2 bilhões cada. O agronegócio exportou US$ 101 bilhões, dos quais US$ 40,9 em soja, mas sem desastres da natureza provocados pela Vale.
De tragédia em tragédia, a história se repete
A tragédia de Brumadinho ocorre três anos após a de Mariana, com o rompimento da barragem do Fundão. O desastre que matou 19 pessoas também destruiu o distrito de Bento Rodrigues, mais Paracatu de Baixo e Gesteira, levando 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração – formados principalmente por óxido de ferro, água e lama –, para a bacia do Rio Doce, numa extensão de 650 quilômetros entre Minas até desaguar no mar do Espírito Santo. Até hoje, a atividade pesqueira está inviabilizada nesse rio. Levando em conta apenas o impacto ambiental, Mariana foi palco do maior acidente na história do País.
Os estragos são irremediáveis e é muito improvável que a região volte ser como antes. Foi para amenizar os impactos da tragédia que nasceu, quatro meses depois, a Fundação Renova. Ela foi criada a partir da assinatura de um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC) pela Samarco e suas duas controladoras (Vale e BHP), em parceria com governos estaduais e federal, mais 70 entidades da sociedade civil. Há 42 programas em andamento, visando a reconstrução econômica e social da região. Mas há, também, críticas à sua atuação, pela lentidão dos processos. “Entendemos os anseios da população, mas não estamos lentos”, diz André de Freitas, diretor de Programas da fundação. “O modelo de reparação é baseado na construção coletiva, um processo de muita aprendizagem.” Para ele, por via judicial, os reparos seriam muitos mais lentos.
De acordo com dados da entidade, R$ 5,26 bilhões já foram investidos para reparar e compensar dados e não existe teto para essas medidas. Diretamente no campo, o montante é de cerca de R$ 2 bilhões aplicados na retomada da agropecuária na região, implantação de áreas ambientais e de recuperação de nascentes, além da regularização através do Cadastro Ambiental Rural e de Áreas de Preservação Permanente. Nas áreas mais críticas atingidas estão 230 propriedades rurais que tomam 8 mil hectares. Além disso, na área tomada pelos rejeitos em 800 hectares foram plantadas espécies de crescimento rápido, como gramíneas. Na sequência, a área deve receber árvores de porte florestal. “Também estamos testando a produção de alimentos sobre os rejeitos”, afirma Freitas. “E até o momento não existem evidências de contaminantes nessas culturas.” Na safra passada foram plantadas áreas de arroz, milho e pastagem para o gado. Outra ação é o pagamento por serviços ambientais aos produtores, em um projeto piloto com 300 produtores. Em toda a calha do rio Doce há cerca de 2,2mil produtores, sem contar 22 mil pescadores cadastrados, entre profissionais e amadores. “Em uma década vamos recuperar 44 mil hectares”, diz Freitas. Para ele, ainda há pelo menos três anos de trabalho intenso, para levar um mínimo de infraestrutura às propriedades rurais e acesso a mercados.