O governo federal reservou R$ 19,3 milhões dos cofres públicos para pagar três empresas de Goiás que têm como donos ex-beneficiários do auxílio emergencial. As selecionadas venceram pregões para fornecer picapes de tração 4 x 4 à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Regional, o órgão é controlado por partidos do Centrão.

Uma dessas empresas participou da licitação de ônibus escolares na qual foi apontado sobrepreço, como mostrou o jornal O Estado de S. Paulo em abril. Mesmo sem capital suficiente, essa empresa fez proposta de R$ 2 bilhões para vender 3.850 veículos destinados ao transporte de estudantes de áreas rurais a outro órgão do governo também controlado pelo Centrão, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Documentos obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo indicam que as três empresas têm ligações. Além de estarem registradas em nome de ex-beneficiários do auxílio do governo, possuem o mesmo contador e seus donos ou endereços estão vinculados à Fazenda Nova, cidade de 5 mil habitantes a cerca de 200 quilômetros de Goiânia.

A dona de uma dessas empresas, a BR-Prime Comercial e Serviços, admitiu ser “laranja”. Questionada, Maria Cristina Ribeiro da Silva afirmou que é cabeleireira e emprestou seu nome para Bruno Araújo Navega abrir a BR-Prime. “Ele tinha uma empresa, só que ele queria abrir outra, eu emprestei meu nome, entendeu?”, disse ela. “Como a gente se separou, ele ficou com a empresa. Eu estava para resolver esse trem, mas nem corri atrás.”

Ônibus

Bruno Navega é o elo com outra empresa vencedora da licitação da Codevasf. Ele já foi sócio da Inovação Distribuição e Comércio. Essa firma apareceu como uma das concorrentes na licitação dos ônibus escolares do FNDE, cuja concorrência pública foi embargada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), após a revelação de risco de sobrepreço de mais de R$ 700 milhões.

No dia do pregão dos ônibus, realizado pela internet, a Inovação chegou a fazer um lance para tentar vencer a disputa, mas logo em seguida alegou “equívoco na cotação” e pediu para o FNDE desconsiderar a proposta. A empresa foi, então, desclassificada. Naquele dia, o pregão já estava sendo monitorado pelo TCU.

No fim de dezembro do ano passado, a mesma empresa teve mais sorte. Em licitações da Codevasf, a Inovação saiu vencedora em dois lotes para venda de caminhonetes 4 x 4. O órgão federal emitiu, então, um empenho (reserva de recursos) em nome da empresa no valor de R$ 10,2 milhões.

Nos registros oficiais, hoje a Inovação é de propriedade do autônomo Samuel Paz Maia Soares. Até junho de 2021, ele estava no programa de auxílio emergencial para população de baixa renda. Ao jornal O Estado de S. Paulo, ele afirmou que já trabalhou em mecânica, borracharia, na prefeitura de Fazenda Nova e fez bicos. “Já fiz de tudo. Só nunca roubei e trafiquei.”

Em um desses bicos, Soares disse ter recebido uma comissão em dinheiro vivo de cerca de R$ 600 mil pela corretagem na venda de uma fazenda. Mas declarou não se lembrar do nome do dono da propriedade que lhe pagou. Afirmou que a maior parte desse valor “investiu” na compra da empresa. “Entrei com o dinheiro, o rapaz entrou com o serviço.”

O “rapaz” a quem ele se refere é mais um personagem na teia de nomes e empresas ligadas às licitações suspeitas da Codevasf. Trata-se do vereador de Fazenda Nova Maycow Douglas (Cidadania).

Segundo o autônomo, o político trabalha para a Inovação em Brasília, onde está registrada a empresa. Maycow Douglas disse que também já foi proprietário da Inovação. Ao ser questionado se vendeu a empresa e se recebeu os valores, desligou.

Inaptas

A professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio Natasha Salinas afirmou que a Lei de Licitações proíbe a contratação de empresa ou profissional inidôneos. Se os donos forem laranjas, disse a professora, as empresas estão inaptas para assumir contratos com a administração pública.

A partir das concorrências para a compra dos veículos foi emitida pela Codevasf ata de registro de preços para fornecimento de caminhonetes para os escritórios da estatal no Distrito Federal, no Tocantins e em Goiás.

O governo pode comprar até 180 unidades. Até agora, adquiriu quatro carros da Inovação e da BR-Prime, segundo informou o órgão. Dos R$ 19,3 milhões empenhados pelo governo, a menor fatia ficou com a BR-Prime: R$ 230 mil, justamente o valor cotado para uma picape.

A história da licitação das caminhonetes envolve uma terceira empresa, a Horus Comercial e Serviços. A estatal já reservou para pagá-la R$ 8,9 milhões. A empresa está em nome de Hugo Dellion Carlos Damas, nascido em Fazenda Nova. Ele recebeu auxílio emergencial até outubro de 2021, dois meses antes de sair vencedor na licitação da Codevasf.

No pregão, Damas está registrado como empresário. Em 2018, no entanto, ele entrou com uma ação trabalhista e seu advogado no processo, Ronaldo Lamonier, disse que, na época, o cliente era trabalhador rural, sem recursos para abrir uma empresa.

Procurada, a Codevasf informou que a BR-Prime entregou um veículo e a Inovação, três, mas ainda não houve pagamento. A estatal disse que “não houve inconsistências” na licitação. “As contratações observam rigorosamente as disposições da legislação em vigor.”

O FNDE não respondeu aos contatos.

Bruno Navega e Hugo Damas não foram localizados até o fechamento deste texto. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.