O estudo Criminalidade e espaço urbano: As redes de relação entre crime, vítimas e localização no Rio de Janeiro, elaborado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), revela que as mulheres constituem o maior alvo da criminalidade na capital fluminense, em especial mulheres negras e pardas. Os autores da pesquisa, Fernanda Ventorim, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFF), e Vinicius Netto, professor e ex-coordenador do PPGAU, analisaram as conexões entre os diferentes tipos de crimes cometidos na cidade do Rio de Janeiro, considerando perfil das vítimas, horário e onde eles tendem a acontecer.

Com auxílio de uma ferramenta denominada “redes complexas”, eles concluíram que as mulheres sofreram 56,6% do total de crimes cometidos na cidade, no período de 2007 a 2018, e foram vítimas de 71,7% dos crimes de agressões no município. A maioria desses casos é de vítimas negras ou pardas (51,7% dos casos), assim como mulheres jovens, na faixa de 20 a 40 anos de idade (79,8%).

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O método de “redes complexas” permite explorar associações a partir das similaridades e frequências de conexões entre fatores e variáveis que compõem o problema da criminalidade urbana, segundo os autores do estudo. Com ele, três agrupamentos são gerados: ocorrências similares de acordo com o perfil das vítimas; características dos tipos de crime registrados; e diferentes localizações.

Os pesquisadores mostraram que as relações entre os dados não acontecem de forma aleatória, mas são resultado de questões sociais presentes nas metrópoles brasileiras, além de apresentarem padrões de ligação entre certos tipos de crime, características das vítimas e a localização das ocorrências. 

O estudo foi publicado na Revista Brasileira de Gestão Urbana, um dos principais periódicos sobre urbanismo do país, no ano passado, e se encontra em avaliação pelo Journal of Quantitative Criminology, para publicação este ano.

Base

A pesquisa utilizou dados do Instituto de Segurança do Estado do Rio de Janeiro (ISP-RJ), que totalizaram cerca de 500 mil ocorrências criminais entre 2007 e 2018 na capital, das quais foram selecionadas 5 mil ocorrências, para capturar padrões dessas conexões, segundo o professor Vinicius Netto. “É um estudo estatisticamente muito robusto”, definiu.

Observou-se diferença significativa entre o tipo de crime que mulheres e homens sofrem, sobretudo homens negros e pardos, que são vítimas de crimes de homicídio, e homens brancos que são mais vítimas de lesão corporal de trânsito. “Em outras palavras, um dos pontos-chave da pesquisa é que as questões de gênero são importantes, ou seja, as mulheres são mais sujeitas à violência; mulheres negras e pardas de maneira desproporcional; assim como homens negros e pardos são sujeitos a um tipo de crime de homicídio doloso, entre outros”, explicou Netto.

Os pesquisadores detectaram também que existem concentrações espaciais desses tipos de crimes. “Mulheres periféricas são, de fato, mais sujeitas à violência”, indicou o professor. Isso inclui o extremo da zona oeste do Rio de Janeiro e o limite do Rio de Janeiro na zona norte com a Baixada Fluminense. 

“São áreas de concentração maior desses crimes, de ocorrências contra mulheres, dos quais a maioria vai ser contra negras e pardas. Aí se sobressaem lesão corporal dolosa e ameaça, que são crimes de agressão”, disse. 

Nos bairros de Santa Cruz, Pavuna e Campinho, todas as ocorrências reportadas referem-se a casos de estupro contra vítimas do sexo feminino, em sua maioria crianças e adolescentes (entre 0 e 20 anos) e predominantemente pardas (88%). As informações reforçam a hipótese guiadora do estudo de como crimes cometidos no município têm relação com questões socioeconômicas presentes na cidade, sobretudo as desigualdades de gênero e racial, sustentam os autores.

A sondagem trabalhou especialmente com crimes cometidos contra pessoas, seguindo a classificação do ISP-RJ, abrangendo crimes relacionados a lesões contra a vítima (lesão corporal dolosa, ameaça e estupro); crime associado às pessoas desaparecidas; crimes relacionados aos homicídios (homicídio doloso, tentativa de homicídio e morte por intervenção de agente do Estado, como resultado de operações policiais); e crime associado a acidentes de trânsito. Violações como furtos e roubos, apesar de frequentes e amplamente registrados na cidade, não foram considerados pela falta de detalhes sobre as vítimas, como identidade de gênero, idade e identificação racial, o que inviabiliza a aplicação do método, esclareceram os pesquisadores.

Criminalidade e gênero

A quarta edição do Mapa da Desigualdade, publicada em 2023, aponta que os registros de violência contra mulheres diminuíram em 19 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, entre 2018 e 2021. Segundo os autores, a queda reflete a subnotificação de casos de violência durante a pandemia de covid-19 devido ao isolamento social. Apesar de não avaliar a variação da quantidade de casos de agressão contra as vítimas do sexo feminino, uma vez que os dados do ISP-RJ registram apenas “sexo feminino” e “sexo masculino”, o estudo demonstra que mulheres são as principais vítimas de crimes violentos no município do Rio.

Fernanda Ventorim explica que no que se refere aos crimes relacionados às mulheres, muitos casos não são denunciados devido ao medo ou por dependência financeira. “Por exemplo, no âmbito de ameaças ou violência doméstica, surge a preocupação de que as mulheres não se sintam à vontade para denunciar ou não possam fazê-lo devido ao receio pelos seus filhos. No entanto, no contexto de lesões corporais relacionadas a acidentes de trânsito, é algo que frequentemente resulta em registro, uma vez que as pessoas tendem a elaborar boletins de ocorrência para acionar o seguro do veículo”. 

Chamou a atenção ainda que esse tipo de crime é frequentemente associado a homens brancos e de alta renda, que residem em áreas nobres da cidade. “A maioria dos casos registrados ocorrem nessa região pelo maior poder aquisitivo dessas pessoas que, muitas vezes, possuem veículos”, indicou.

Com relação aos homens, o estudo identificou que o crime a que estão mais expostos é a lesão corporal culposa de trânsito, ocorrência que se destaca em sete dos 16 grupos de ocorrências. Também os delitos contra a vida (homicídio doloso, tentativa de homicídio, morte por intervenção de agente do Estado ou pessoa desaparecida) têm pessoas do sexo masculino como principais vítimas, correspondendo a 83,8%. Desse total, homens negros ou pardos constituem a maioria, com 68,3% do total, proporção também maior do que a representação desse grupo racial na sociedade brasileira (55,5%, somando homens e mulheres). Em relação à faixa etária, as vítimas do sexo masculino tinham entre 20 e 40 anos (61,9%).

Outros resultados apurados pelos pesquisadores mostram que lesões contra a vítima se destacam em oito grupos, sendo os perfis mais frequentes de pessoas do sexo feminino, negras ou pardas, entre 30 e 50 anos (27,36 % da amostra) e, na maioria dos casos, localizadas em bairros de baixa renda.

Geografia

O fator geográfico é determinante na avaliação das ocorrências, devido à frequente denúncia de crimes nas áreas mais periféricas, aponta o estudo. Somado a isso, locais com renda predominantemente baixa, em regiões espacial e socialmente segregadas, ou seja, “áreas mais distantes do centro e com menores oportunidades de trabalho e de serviços”, conforme define Fernanda Ventorim, são mais suscetíveis a crimes de violência com a intenção de ferir ou difamar, como a lesão corporal dolosa e ameaça.

Avaliando a criminalidade no geral, a pesquisadora reflete que diferentes estados têm experiências próprias com o tema. “Ao analisar pesquisas realizadas em outros países, nota-se que elas não têm relação com os desafios que enfrentamos no Brasil, por exemplo. São problemas diferentes, por isso acho essa área tão interessante para compreender as nuances que podem variar de uma região do mundo para outra”.

Vinicius Netto informou que Fernanda Ventorim pretende dar prosseguimento à pesquisa porque está se candidatando, no momento, a um doutorado em criminologia, nos Estados Unidos, com essa finalidade, usando ferramentas de análise de redes, que são avançadas em termos de computação. Pela UFF, o grupo do professor Netto investiga segregação social e urbana e questões relacionadas.