12/08/2022 - 20:06
“O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito”. Para um em cada dez brasileiros, a beleza descrita no clássico O Mar, de Dorival Caymmi, nunca pôde ser comprovada ao vivo. Uma pesquisa realizada pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, em parceria com a Unesco e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostrou que um em cada dez brasileiros nunca foi à praia. Segundo o levantamento Oceano sem Mistérios: A Relação dos Brasileiros com o Mar, 159 milhões de brasileiros – 75% da população – têm ao menos um contato com o mar anualmente. Outros 20% pisam na areia ao menos uma vez a cada 15 dias, levando ao pé da letra outra música de Caymmi: “Quem vem pra beira do mar, ai, nunca mais quer voltar”. Mesmo assim, o nível de conhecimento sobre os ambientes marinhos ainda é muito baixo.
O Brasil é um país litorâneo com 7.367 quilômetros de costa banhada pelo Oceano Atlântico e algumas das mais belas praias do mundo. Talvez por isso, nove em cada dez brasileiros já visitaram a praia pelo menos uma vez na vida. Os Estados do Nordeste detêm 44% da costa, com 3.206 quilômetros banhados pelo mar. Isso explica, claro, por que 91% dos nordestinos já pisaram na faixa de areia, enquanto nos Estados do Centro-Oeste, distantes do oceano, apenas 55% dos entrevistados disseram ter visitado uma praia. No Norte, com pouco litoral, 71% já estiveram no mar.
O estudo ouviu, entre 5 de março e 12 de abril deste ano, 2 mil homens e mulheres entre 18 e 64 anos, de todas as classes sociais, nas cinco regiões do País. O resultado foi apresentado durante a Conferência dos Oceanos da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada recentemente em Lisboa, Portugal. “A pesquisa nos permite compreender a relação das pessoas com ambientes costeiros e marinhos e como a sociedade entende a influência do oceano no seu dia a dia. Também nos mostra como o brasileiro percebe os impactos de suas ações e seus hábitos”, disse Malu Nunes, diretora executiva da Fundação Grupo Boticário.
Aos 53 anos, o servidor público aposentado Marcos de Sousa Duarte, de 53 anos, ainda não sabe o que é sentir o cheirinho da maresia. Ele mora em Ceilândia do Norte, no Distrito Federal, a 1.167 quilômetros das praias mais próximas, no Rio de Janeiro. “Nunca fui à praia por alguns empecilhos, um deles a falta de acessibilidade, pois sou deficiente físico. Outro empecilho foi a condição financeira, principalmente porque os locais de praia que possuem acessibilidade custam mais caro”, disse. Duarte mora em área densamente urbanizada, mas prefere o campo. “Ultimamente, não tenho viajado. No entanto, pretendo, pois tenho o sonho de conhecer a praia.”
Mesmo morando a 180 quilômetros do mar, em São Miguel Arcanjo, interior de São Paulo, a aposentada Cacilda Rodrigues dos Santos já completou 65 anos e nunca foi à praia. “Bem que gostaria, mas nunca tive a oportunidade”, disse a idosa, moradora da zona rural. Sua neta, a costureira Sheila Oliveira Franco, de 28, só conheceu o mar quando completou 18 anos. “Fui em ônibus de excursão à praia de Ilha Comprida (litoral sul de São Paulo). Fiquei muito ansiosa, quase não dormi direito. A sensação foi incrível ao ver toda aquela água, tanto que fiquei me perguntando por que não tinha ido antes.”
Apesar de ter gostado da experiência, ela não consegue ir todo ano. “Fui pela última vez em 2019, acompanhando uma romaria. No topo dos meus sonhos está o de conhecer uma daquelas praias com areia branquinha e água bem clarinha, mas ainda não consegui realizar. Praia, só conheço a de Ilha Comprida mesmo.” Sheila lembra que, para quem mora na zona rural, é mais difícil viajar para lugares que não sejam próximos, tanto pela condição financeira, pois os hotéis são caros, como também pela falta de oportunidade.
Não é o caso da lavradora aposentada Áurea de Oliveira Rodrigues, de 68 anos, que já teve muita oportunidade, mas nunca tocou a água do mar. Moradora do bairro Jundiaquara, em Araçoiaba da Serra, também no interior paulista, ela conta que os filhos já a convidaram inúmeras vezes e ela sempre se esquivou. “Eu só vejo o mar pela televisão, mesmo assim tenho pavor daquela imensidão de água. Gosto mesmo de ir ao rio ou a um tanque pescar. E olha que sou boa pescadora, mas só em lugar com pouca água. O mar é bonito, mas que fique longe de mim”, disse.
Comportamento
O estudo investigou ainda os hábitos e comportamentos das pessoas quando estão próximas ao mar. A maioria da população – 61% dos entrevistados – afirma sempre praticar o turismo responsável, evitando usar produtos e embalagens poluentes, não deixando nem tirando nada do ambiente, enquanto 7% declararam que a prática ocorre na maioria das vezes. O porcentual de pessoas que afirmam adotar o turismo com responsabilidade às vezes, raramente, nunca ou que não soube responder, somado, chega a 32%.
As atividades preferidas dos brasileiros quando estão próximos do mar são tomar banho (51%), andar na praia (32%), tomar banho de sol (20%), aproveitar a gastronomia local (19%) e praticar esporte (17%). Nesse quesito, foram mais citados o futebol, seguido do voleibol e do surfe. Aparecem também entre as atividades mais lembradas admirar a paisagem (15%), relaxar (10%), brincar na areia (8%), meditar e refletir (6%) e fazer trilha (3%).
O empresário Pedro Henrique Cecchini, de Sorocaba, vai com a família em média quatro vezes ao ano para o litoral paulista. “Mais do que eu, minha esposa, meu sogro e minha sogra gostam muito de praia. A gente aluga uma casa e fica de três a quatro dias. É um momento de lazer e descanso, mas também de apreciar a comida local, com frutos do mar”, disse.
Geralmente, a família aluga uma casa em praias do Guarujá ou de São Sebastião. “As cidades dependem da temporada para movimentar o comércio, os quiosques, hotéis e restaurantes. Embora eu considere a questão ecológica importante, a maioria das pessoas não tem essa percepção. Muitos vão à praia apenas para curtir.”
A população, em sua maioria, também desconhece a procedência dos alimentos consumidos, especialmente em relação aos pescados e frutos do mar. Os entrevistados nunca (36%) ou raramente (10%) conhecem a origem dos peixes consumidos, podendo assim ter no prato espécies em risco de extinção, como o cação, nome genérico para todas as espécies de tubarão e raia pescados. Os entrevistados que sempre buscam conhecer a procedência dos alimentos representam 31%, sendo 6% a maioria das vezes e 11% às vezes.
Costões e falésias
Em relação a outros ambientes costeiros e marinhos existentes no Brasil, o nível de conhecimento e a frequência das visitas são menores do que à praia. Costões rochosos já foram visitados por 47% da população, seguidos pelos manguezais (42%), dunas (41%), estuários (32%), restingas (28%), recifes de corais (25%) e falésias (23%).
A pesquisa também apontou que parcelas consideráveis da população nem sequer ouviram falar de alguns desses ambientes, como falésias (paredões que se formam na costa pelo contato das águas do mar), com 40% de desconhecimento, restinga (vegetação que recobre o solo arenoso na costa), com 37%, e estuário (área onde um rio se junta ao mar), com 32%. A restinga se destaca na região Sul, onde 45% dos moradores já visitaram este tipo de local, enquanto o contato com recifes de coral é maior no Nordeste (36%).
Na opinião dos pesquisadores, esses dados podem ser reflexo da falta de informação sobre os ambientes costeiros por parte dos brasileiros, que não reconhecem e diferenciam os variados ecossistemas. A pesquisa mostrou ainda que a maioria pouco se informa sobre os ambientes marinhos. Os entrevistados que raramente ou nunca buscam informações sobre o oceano somam 47%. Por outro lado, as pessoas que sempre buscam se informar sobre o tema representam 27%, enquanto 6% têm o hábito de se informar a maioria das vezes e 14%, às vezes.
Outros “achados” da pesquisa: 50% consideram que o oceano impacta diretamente nossas vidas, enquanto 87% percebem que ele contribui para a economia brasileira – de fato, 19% do nosso Produto Interno Bruto (PIB) vêm do mar. Enquanto 80% acham que o poder público é o responsável pela conservação dos oceanos, 51% atribuem essa tarefa também às ONGs. Um porcentual alto dos entrevistados – 82% – está disposto a mudar hábitos pelo bem do oceano. Já 41% avaliam como negativa a atuação do Brasil para conservar os mares.
De acordo com Fábio Eon, coordenador de Ciências da Unesco Brasil, o turismo em áreas naturais tem grande força no País e atrai também estrangeiros. “Entender como esse turismo ocorre é de extrema importância para inibirmos a prática predatória, que coloca em risco ecossistemas e a biodiversidade. Esse resultado destaca o desafio de desenvolver uma cultura oceânica que engaje e demonstre como isso pode ser feito, reforçando como este ambiente influencia e é influenciado pelas ações da sociedade”, afirmou.
Para Malu Nunes, os resultados são ao mesmo tempo animadores e desafiadores. “Entendemos que há uma grande lacuna de conhecimento sobre o oceano e seus ambientes. O turismo responsável pode ser uma ferramenta estratégica nesse processo de conscientização e engajamento, além de aliar o desenvolvimento socioeconômico aos esforços de conservação da biodiversidade”, disse.
Década do Oceano
A ONU declarou o período de 2021 a 2030 como a Década do Oceano, que tem como um dos principais objetivos incentivar a geração de conhecimento para a sociedade. A pesquisa aponta, porém, que apenas 0,3% dos brasileiros já está informado sobre a década, enquanto 6% apenas ouviram falar sobre o assunto e 93% ainda não conhecem nada sobre o tema, o que demonstra a importância da comunicação para mudar esta realidade.
“O estado de conservação do oceano é bastante preocupante. Uma avaliação global da ONU mostrou que precisamos de ações urgentes para reverter o quadro de degradação e ameaça à biodiversidade e aos ecossistemas”, alertou Eon.