31/10/2022 - 11:00
Premiê espanhol entre 2004 e 2011, José Luis Rodríguez Zapatero foi contemporâneo a Luiz Inácio Lula da Silva na maior parte dos dois primeiros mandatos petistas (2002-2010). Ao sair do poder, o líder do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) se tornou referência na esquerda mundial. Por seu perfil moderado, assumiu o papel de mediador em países como a Venezuela.
No Brasil para acompanhar a votação, ele falou durante 50 minutos ao Estadão sobre temas que colocaram a campanha petista na defensiva e tendem a não desaparecer após o resultado, como relação com ditaduras, regulação da mídia e combate à corrupção.
Há uma nova onda de esquerda na América Latina ou apenas uma sequência de derrotas dos governantes por causa da pandemia e da crise econômica?
Acredito que as vitórias da esquerda no continente têm a ver com a presidência de Donald Trump e as consequências de uma direita que se “direitizou” e um discurso de ameaça comunista sem sentido. Basta andar em São Paulo, Buenos Aires e na Cidade do México. O que se vê é capitalismo. A resposta a um discurso fora da realidade é a derrota. O segundo fator que influiu é realmente o agravamento da desigualdade com a pandemia. As sociedades tendem a pensar na esquerda quando se fala em reduzir desigualdade.
O sr. tem se dedicado a mediar a situação na Venezuela. Por que não foi possível chegar a eleições livres?
Os países e nós, políticos, não devemos tentar dar lições de superioridade democrática ou moral. Sempre apostei no diálogo entre o governo de Maduro e a oposição. A única saída é defender a política e a paz. Os outros caminhos, como sanções, fracassaram. Só empobreceram a Venezuela. Esse foi o fracasso dos que apostaram em um governo paralelo. Me alegro que os EUA estejam negociando com a Venezuela.
Considera que há uma ditadura na Venezuela?
Não me dedico a qualificar regimes políticos, mas a ajudar a evitar mortes por política. No meu país, desapareceram o ETA e séculos de violência. Há cientistas políticos que podem classificar líderes e regimes.
O eleitorado de centro contrário a regimes autoritários em geral ficou órfão, sem opção diante do avanço da ultradireita. Mesmo que não por convicção, por estratégia eleitoral não seria prudente à esquerda condenar esses regimes?
Admiro o presidente Lula e todos os que mantêm suas convicções. Andar com a correnteza é fácil, qualquer político faz.
Parte dos analistas políticos crê que a prioridade dada pela esquerda à defesa de minorias e causas identitárias, diante dos problemas do dia a dia da maioria, especialmente a economia, jogou parte do eleitorado de centro para a ultradireita. O que acha?
Faz parte da identidade da esquerda a luta pela igualdade. É fundamental que uma mulher possa trabalhar, que não esteja condenada a tarefas de casa ou a ser submissa ao marido, que possa estar em um governo. Queremos sociedades que abracem a igualdade.
A que atribui o apoio grande à direita populista?
A direitização da direita começa nos EUA, com os movimentos “alternative right” e Tea Party. Os EUA são uma sociedade dirigida por brancos, que dentro de 10 anos terá uma maioria de 17 a 45 anos de latinos, afrodescendentes e asiáticos. Externamente, olham o mundo e veem a China. Essa sociedade, de repente, tem uma crise de identidade, que elege Trump e chega à invasão do Capitólio. Isso porque não aceita que o mundo muda em demografia e geoeconomia. O resultado é essa direita rebelde, antissistema, negacionista, falando em valores demoníacos. Mas isso é dar socos contra a parede. Ninguém recua após conquistar direitos.
Parte da estratégia da ultradireita é considerar sistematicamente a imprensa uma inimiga. Isso já ocorreu em governos de esquerda. Reconhece exagero?
Concordo. Na competição política, é preciso ter claro que teus adversários são os políticos. Claro que os meios de comunicação não são espíritos puros. Têm sua linha editorial, seus interesses, mas isso faz parte do sistema. Normalmente, confrontar os meios não dá resultado. Mais cedo ou mais tarde, é um erro.
Parte do enfrentamento veio ligada a uma ameaça de regulação dos meios de comunicação. É favorável?
Estamos numa fase muito inicial. Sem dúvida, a proliferação de fake news exigirá uma regulação. Agora, quais são as condições dessa regulação? É essencial um consenso. A sociedade deverá estar disposta limitar a esse direito quase essencial, à liberdade de expressão, para conciliar com a veracidade. Talvez a Europa possa começar neste caminho, já que tem muita tradição regulatória. O debate é incipiente, e nos aproximamos dele temerosos, para não atacar a liberdade de expressão, talvez sem querer. Todos fomos alvo de notícias falsas. Eu mesmo fui alvo e pensei “faço algo?”. Nunca fiz.
O próximo presidente encontrará instabilidade econômica mundial, diferentemente do que ocorria no início dos anos 2000. Responsabilidade fiscal agora é ainda mais necessária?
Vejamos a Europa, na crise de 2008 e 2009. A reação política da União Europeia foi a austeridade. O resultado foi ruim. Após a crise da pandemia, a reação política foi de expansão do gasto. O resultado foi positivo. O meu país hoje tem mais emprego do que antes da pandemia. É impressionante.
Não é uma bomba-relógio?
Se a economia cresce, não. Se o país ganha produtividade e crescimento, vai poder assumir a dívida.
O PT é pressionado a um mea-culpa sobre a corrupção em governos anteriores e explicar como pretende evitar a repetição. Como vê a resistência em fazê-lo?
Não conheço os processos, mas a esquerda deve ser a primeira a lutar pela limpeza e pela institucionalidade. Ter autocrítica nunca é ruim. No PT, no PSOE, em todos os partidos. Uma autocrítica razoável, claro. Também não se trata de dar razão ao adversário, porque isso é o que pretendem. Com certeza houve fatos negativos no Brasil, mas vou dizer uma coisa. Convivi com presidentes de todas as regiões por anos. Lula é um homem honesto. Vi outros presidentes, vi do que falavam e do que gostavam. Lula nunca me falou de casas, de carros, de comidas boas ou restaurantes luxuosos. Outros presidentes, sim. Com isso não quero dizer que não houve casos de corrupção, claro que houve.
Um presidente pode não ficar sabendo?
Ser presidente é algo intransferível. Entendo que os cidadãos não compreendam isso. Um presidente não está sempre fiscalizando e normalmente não lhe chegam as más notícias, as dúvidas. Claro que a oposição vai dizer “o responsável é o presidente”. É normal. Se pode dizer “o senhor não controlou, não fiscalizou”, mas não atacar a honestidade pessoal.
Nesta campanha turbulenta, algo chamou atenção?
Não. O Brasil é uma democracia mais sólida do que se diz no Brasil.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.