Na mitologia chinesa, o dragão foi um dos quatro animais convocados para ajudar na criação do mundo. Além de tudo que representa na cultura do maior país asiático, como poder e audácia, ele também simboliza o controle das águas em terras de agricultura. Nada mais natural, já que tratar da proteção do alimento é uma questão de sobrevivência em uma nação de 1,4 bilhão de pessoas.

Blairo Maggi: o ministro da Agricultura e Pecuária diz que os produtores precisam de confiança para investir (Crédito:SERGIO DUTTI)

Mas é justamente por conta dessa proteção que pela primeira vez na história da relação comercial entre Brasil e China, o governo brasileiro está disposto a iniciar um processo de consulta contra o país asiático na Organização Mundial do Comércio (OMC), órgão global de arbitragem de conflitos. A previsão é que o Brasil entre com o pedido na OMC até o fim do ano, ficando para o próximo governo abrir o contencioso. O governo tem considerado excessiva a proteção chinesa ao seu mercado local porque isso vem se tornado um empecilho às exportações, por conta das salvaguardas aplicadas ao açúcar e pela acusação de preços artificias (dumping, na tradução do inglês) praticados pela indústria brasileira de carne de frango.

“Estamos buscando uma solução racional e assertiva, que seja boa para ambos os lados” Li Jinzhang, embaixador chinês no Brasil (Crédito:Divulgação)

Mas valeria a pena o Brasil entrar em conflito com o seu principal parceiro comercial? Para essa pergunta ainda não há uma resposta clara. Para entender o embate entre os dois países é preciso retroceder a junho de 2017, quando os chineses, alegando um aumento excessivo das importações de açúcar, elevaram a tarifa adicional de 50% para 90%.

O porcentual elevado vale para a quantidade de açúcar comprado fora da cota determinada pelos chineses, que é de 1,945 milhão de toneladas por ano. A tarifa para o volume dentro da cota é de 15%. A sobretaxa ao setor tem duração prevista de até três anos, com redução gradual de 5% ao ano.

Francisco Turra: o presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal diz que as decisões chinesas são incomuns (Crédito: Kelsen Fernandes)

 

As perdas têm sido imensas para o Brasil. No ano passado, o açúcar vendido à China rendeu US$ 134,5 milhões, ante US$ 823 milhões em 2016, queda de 83,6%. Neste ano, os dados mais recentes, para as vendas até agosto, dão conta de US$ 56,1 milhões. No caso da carne de frango, as tarifas sobretaxadas passaram a ser cobradas em junho deste ano e variam de 18,8% a 38,4%. Os chineses alegam que os preços artificiais têm como base a prática de subsídios.

Em 2017, as vendas brasileiras de carne de frango para a China renderam US$ 760 milhões, a segunda maior do setor, atrás apenas do Japão. “Na medida em que ganhamos mercado na China, precisamos aumentar a produção”, diz Blairo Maggi, ministro da Agricultura e Pecuária (Mapa). “Mas, na medida em que aumentamos a produção, ficamos mais dependentes deles. Esses freios e paradas têm atrapalhado muito a expansão dos negócios no Brasil.” Maggi se encontrou com o embaixador chinês no Brasil, Li Jinzhang, no início de setembro, em um evento realizado em São Paulo. “As cooperativas e produtores ficam muito receosos de fazer novos investimentos”, afirmou o ministro. “Porque vem uma atitude por parte do governo chinês que faz com que os produtores no Brasil tenham dificuldade nesse comércio.” Jinzhang não deixou de se pronunciar, mas a resposta não animou os produtores brasileiros. “Estamos buscando uma solução racional e assertiva, que seja boa para ambos os lados”, disse Jinzhang.

Além da baixa competitividade e produtividade na China, há o contrabando que chega a 2,5 milhões de toneladas por safra” Eduardo Leão de Souza, diretor da União da Indústria da
Cana-de-Açúcar (Crédito:Niels Andreas)

Caso vá em frente, o contencioso se desenrola após diversas tentativas de negociações por parte do governo brasileiro com autoridades chinesas. Em julho, o presidente Michel Temer já havia solicitado, sem sucesso, uma resposta do presidente chinês, Xi Jinping, quando participavam de uma reunião do bloco comercial dos Brics, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Para se ter ideia da importância da parceria comercial com os chineses, apenas em 2017 foram exportados US$ 47,5 bilhões ao país asiático, sendo US$ 26,6 bilhões provenientes do agronegócio, um crescimento de 27,6% em relação ao ano anterior. Por outro lado, as importações totais somam apenas US$ 27,3 bilhões. Isso é quase nada na sua agenda. A China é a maior economia de exportação no mundo, com cerca de US$ 2,3 trilhões por ano.

DIPLOMACIA No caso do setor sucroenergético, a expectativa para a primeira consulta por parte do governo brasileiro na OMC era de que ela ocorresse no início de outubro, poucos dias antes do fechamento dessa edição da DINHEIRO RURAL. Na mesma direção, a indústria de aves aguardava um parecer positivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex), o que já ocorreu no caso do açúcar.

No porto: o açúcar que sai do Brasil para a China concorre com a produção local e com o contrabando (Crédito:Luiz Carlos Murauskas/Folhapress)
Política: na China, que precisa alimentar 1,4 bilhão de pessoas, a produção rural é uma questão de segurança nacional (Crédito:Divulgação)

A pressa em resolver o imbróglio acontece também por conta dos prejuízos na produção. Segundo estimativas preliminares da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), além das perdas em valores, o aumento das alíquotas jogou por terra o volume exportado, caindo, drasticamente, de 2,5 milhões de toneladas, para apenas 300 mil toneladas. Para enterrar ainda mais os ânimos do setor, neste ano, o Brasil perdeu a posição de maior produtor mundial de açúcar para a Índia, que vai produzir 35 milhões de toneladas. Já o total brasileiro será de 30 milhões de toneladas, seguido pela Tailândia, com produção de 15 milhões de toneladas e exportações de 13 milhões de toneladas.

O diretor executivo da Unica, Eduardo Leão de Souza, lamenta o impasse com a China, mas não vê outra saída que não seja o embate na OMC. “Não podemos perder mais tempo”, diz ele. “Apesar da salvaguarda ser por três anos, sabemos que há uma forte pressão para que eles estendam essa medida.” Em tese, a medida pode durar até quatro anos, ser estendida por mais quatro e ter ainda mais dois anos adicionais para países emergentes, como é o caso do Brasil.

Mas, até agora, o governo brasileiro tem tentado resolver diplomaticamente o impasse, porque não interessa nenhum ruído com a China. O país tem ganhado cada vez mais espaço no agronegócio brasileiro e tende a crescer ainda mais. Para se ter ideia, há dez anos, 60% da exportação de açúcar tinha como destino a União Europeia. Hoje, esse montante é de 6%. Por outro lado, o incremento da participação do país asiático nas vendas brasileiras saltou de 18% para 36% nos últimos anos. E ainda há espaço para crescimento, já que a China possui uma taxa de consumo de açúcar maior do que a média mundial. Enquanto países desenvolvidos até reduzem essa expansão, como o Canadá (-1,2%) e a União Europeia (-0,5%), os chineses têm um acréscimo de 2,3% ao ano, três vezes a média mundial, de 0,7%.

Segundo Souza, da Unica, estudos brasileiros sobre os pontos levantados pelos chineses indicam dois fatores principais aos produtores daquele país: a baixa competitividade e a importação de açúcar contrabandeado, com imposto zero. “Além da baixa competitividade e produtividade na China, há o contrabando que chega a 2,5 milhões de toneladas por safra”, afirma Souza. “Esse é um dos fatores que mais tem prejudicado os produtores chineses. É o pior dos mundos.” A China consome atualmente cerca de 15 milhões de toneladas por ano, mas produz no máximo dez milhões de toneladas. Tirando as compras brasileiras, o restante é abastecido justamente pelo contrabando.

Para solucionar o impasse, o setor privado brasileiro também vinha conversando com os produtores chineses. Uma das propostas era criar uma segunda cota para a exportação, com tarifa de 50%. A outra proposta seria uma missão entre os dois países para trocar conhecimento, com o objetivo de melhorar a competitividade chinesa. “Nós propusemos um programa de etanol a partir da cana-de-açúcar”, afirma Souza. “Essa seria uma forma de ter uma produção diversificada e, em momentos de preços baixos, eles poderiam ter uma alternativa.” Mas, infelizmente, essas conversas não evoluíram no nível esperado.

O mesmo ocorreu com o impasse sobre a produção avícola brasileira. Na avaliação de entidades nacionais, como a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), a China não somente cometeu equívocos ao acusar o País de preços artificialmente mais baixos (dumping), como envolveu empresas que não exportam para lá. De acordo com Francisco Turra, presidente da ABPA, a posição chinesa é cheia de irregularidades. “Quando se entra com o processo de dumping, o tempo para fixar uma tarifa é de seis meses. Venceu esse período e nós continuamos procurando negociar”, afirma Turra. “Mas não aceitaram a negociação. Ao contrário, eles pediram prorrogação da tarifa por mais seis meses. O fato é incomum e nunca existiu na vida de nossas entidades.”

De acordo com a ABPA, não há ainda estimativas dos prejuízos com as sobretaxas aplicadas porque o setor cumpre contratos antigos ainda em vigor. Mas eles são iminentes. Nos últimos cinco anos, as compras da China saltaram de 190,1 mil toneladas de carne de frango, volume de 2013, para 391 mil toneladas em 2017. Com o consumo em alta no país, o avanço do produto brasileiro na China pode chegar a 50%. “Eles precisam de frango, contam com um crescimento de renda anual e nós temos a necessidade de encontrar parceiros”, afirma Turra.