O casal de médicos Raquel e Diego Laurentino Lima, de 32 e 36 anos, estava na linha de frente do combate à covid-19 no País. Emergencista, ela cuidou de dezenas de pacientes, 12 horas por dia. Já ele, cirurgião, conduziu estudos sobre a doença. Em agosto, Lima aproveitou uma oferta de trabalho e os dois resolveram que era hora de ir morar em Nova York. “A pandemia deixou claro que o Brasil, por tudo que está passando, convida os bons profissionais a se retirarem.”

Há um boom na saída de profissionais de saúde para os Estados Unidos, destaca o Estadão. Assim como o casal Lima, a maioria vai em busca de valorização profissional, melhor remuneração e investimentos em pesquisas. Segundo o relatório fiscal de 2020, os EUA registraram alta de 36% nos vistos de permanência concedidos a brasileiros em uma categoria específica, o EB2, voltada para os chamados “profissionais excepcionais” – o tipo mais comum requisitado por médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, mas que também inclui outras áreas deficitárias naquele país, como aviação e engenharia.

Em números absolutos, 1.899 “profissionais excepcionais” deixaram o País de forma definitiva no ano passado, o maior índice em pelo menos uma década. A estatística inclui tanto novos vistos concedidos quanto ajustes de status – ou seja, casos de pessoas que entraram no país com autorização de outra natureza, mas conseguiram trocar depois. Esse aumento contrasta com a queda de 48% nas emissões de vistos, em geral, pelo governo americano em 2020.

“Só consegui embarcar porque, como minhas pesquisas são relacionadas à covid, fui considerado prioridade”, relata Lima, que deu entrada para obter o EB2. Segundo conta, ele já vinha pensando em morar fora e até fez estágios em Japão e Estados Unidos antes. “Tive ainda mais certeza da decisão quando vi a forma que o Brasil enfrentou a pandemia. Somos um dos únicos países a ficar insistindo em coisas sem respaldo científico, como cloroquina.”

Para Lima, também pesaram as condições de trabalho e qualidade de vida. “No Brasil, o médico pode até ganhar dinheiro, mas não tem tempo de aproveitar. Aqui, os contratos são de U$ 200 mil, U$ 300 mil (R$ 1 milhão a R$ 1,6 milhão) por ano e o ambiente é muito melhor. Entre os brasileiros, a gente brinca que ‘virou modinha’ vir para os Estados Unidos.”

Limite

Em paralelo aos relatórios oficiais, a assessoria D4U USA, especializada em imigração legal, relata ter observado, no ano passado, alta de 30%, considerando apenas profissionais de saúde à procura de visto de residência nos Estados Unidos. “O volume aumentou bastante, não só pela pandemia. É a situação do Brasil, como um todo”, diz o CEO da empresa, Wagner Pontes. “Quando a gente senta com o cliente, a maioria fala que chegou ao limite.”

Pontes explica que a tendência, apesar de mais acentuada agora, já vinha sendo percebida desde o fim de 2016, quando o governo americano flexibilizou regras e encurtou o processo para o EB2. Antes, o visto levava cerca de 36 meses para sair. Hoje, pode ser obtido em menos de um ano. Para ele, esse aumento deve ficar ainda mais claro nos relatórios oficiais seguintes. “A partir de março de 2020, praticamente não houve entrevista consular, então muitos processos ficaram amarrados. Existe uma demanda represada. Só aqui no escritório, são centenas (de processos).”

É o caso da dentista Mariana Antunes, de 38 anos, que atua no Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, aplicou o visto no ano passado e aguarda alguns trâmites para se mudar de vez. “Passei um ano nos Estados Unidos, em 2018, e o que mais me deixou feliz foi a segurança de poder caminhar na rua sem medo”, descreve.

Para exercer a profissão nos EUA, o imigrante também precisa validar o diploma e cumprir uma série de etapas burocráticas. Um dos empecilhos é o alto custo do processo, com provas que custam U$ 900 (R$ 4,7 mil) cada. Não raro, o investimento ultrapassa R$ 100 mil. Com experiência em UTI e centro cirúrgico, a enfermeira Natália Marques, de 36 anos, mora há cinco anos lá com o marido e o filho. “Estou no processo de recebimento do visto de trabalho e já tenho licença para atuar em Nova York”, afirma.

Natália avalia que a espera vale a pena. “No Brasil, cheguei a trabalhar 36 horas seguidas e, muitas vezes, o salário pago não é o justo.” Já a fisioterapeuta Elisangela Ishida fez carreira em clínicas do interior de São Paulo, mas trocou de país em 2019. “Nos EUA, a pessoa consegue validar o diploma em um dia e está empregada no outro.”

Recuperação econômica

A fuga de talentos afeta principalmente as áreas de saúde, pesquisa, tecnologia e inovação, segundo especialistas. Para eles, o cenário prejudica o combate ao coronavírus, traz impactos para a qualidade de vida da população até põe em risco a capacidade de recuperação econômica do Brasil.

De acordo com a professora Luciana Lima, de Estratégias de Negócios e Pessoas do Insper, investimentos em tecnologia e inovação tendem a aquecer a economia e, portanto, acelerar a recuperação dos países depois de crises. “E isso não existe sem capital humano. Por esse motivo, há uma guerra por talentos no mundo”, diz.

Presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC), Luiz Davidovich destaca que “são pessoas de boa formação que deveriam ser vistas como uma reserva no País”. Outros pesquisadores avaliam que cortes em financiamentos públicos de pesquisas têm estimulado a saída. “Sem recurso, muitos não veem perspectiva de continuar os projetos nos seus laboratórios”, afirma Fernanda Sobral, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Vanessa Cepellos, professora de Gestão de Pessoas da FGV-EAESP, também aponta fuga de talentos associada à “falta de perspectiva”. “Não é uma decisão tomada do dia para a noite.” Professora da Unicamp e à frente de pesquisas sobre migração, Ana Maria Carneiro lamenta que “grande parte dessas pessoas é proveniente de universidades públicas ou recebeu bolsas de pesquisa”. “Ou seja, o País perde todo o recurso que investiu na formação, além das competências específicas.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.