O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia para representar o governo no combate à “desinformação sobre políticas públicas”, sem haver, no entanto, no ordenamento jurídico brasileiro a definição do conceito de desinformação. Críticos do decreto veem risco de avaliações arbitrárias no órgão ligado à Advocacia-Geral da União (AGU), que tem a função de defender os interesses do governo perante a Justiça.

Apesar da lacuna legal, desinformação, para a AGU, é “mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”. Em nota, a pasta disse que os dispositivos do decreto ainda serão regulamentados.

A criação da Procuradoria, anunciada na segunda-feira, 2, pelo advogado-geral Jorge Messias, levanta o debate sobre o poder do governo. O termo já foi discutido durante a tramitação do projeto de lei das fake news, mas, com a proposta emperrada na Câmara desde 2021, o instituto legal não avançou.

“Tenho sustentado que a desinformação deve ser combatida com dois eixos: a desinformação dolosa, com criação de fake news, pelo Ministério Público e pela Justiça, inclusive penal; e a desinformação em si, involuntária, com muita informação. Nenhum desses eixos parece caber bem à advocacia pública”, afirmou Floriano de Azevedo Marques, professor de Direito Público da USP.

O governo Lula já tem apresentado iniciativas para o que chama de enfrentamento das fake news. No Palácio do Planalto, haverá uma estrutura para combater desinformação e discurso de ódio nas redes sociais, a Secretaria de Políticas Digitais. Nas campanhas, no entanto, tanto Lula como Jair Bolsonaro aplicaram golpes baixos e foram obrigados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a retirar do ar peças julgadas desinformativas.

Democracia

A defesa da democracia é consenso entre os especialistas, mas há ressalvas às investidas petistas. “Há de se ter cuidado para não existir sobreposição em relação aos demais órgãos de controle das instituições democráticas. Soma-se, ainda, o fato de não termos um conceito jurídico definido sobre ‘desinformação sobre políticas públicas’ nem sequer há orientação judicial (consolidada) sobre isso”, afirmou Alexandre Wunderlich, advogado e professor de Direito Penal da PUC-RS.

Tenho sustentado que a desinformação deve ser combatida com dois eixos: a desinformação dolosa, com criação de fake news, pelo Ministério Público e pela Justiça, inclusive penal; e a desinformação em si, involuntária, com muita informação. Nenhum desses eixos parece caber bem à advocacia pública

Floriano de Azevedo Marques, professor de Direito Público da USP

Já o professor de Direito Constitucional da FGV Roberto Dias disse que a AGU terá de estabelecer distinções, “da forma mais objetiva possível, do que é desinformação e crítica, que é a discordância e a explicitação de erros do poder público na elaboração, no planejamento, na execução e na avaliação das políticas públicas”. A palavra final, segundo ele, no entanto, será da Justiça.

Questionada sobre a motivação do decreto, a AGU afirmou, em nota, que “desinformação e mentira são diferentes do sagrado benefício da liberdade de expressão”. “Sob nenhuma circunstância, não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa”, disse o órgão.

Arma política

Para a professora de Comunicação, Mídia e Democracia da Universidade de Glasgow Patrícia Rossini, ainda precisam ser estabelecidas as formas de combate do uso da desinformação como arma política – um desafio global. “A discussão tem muito mais futuro pensando em alcance, impacto e influência (das fake news) do que definir tipos de conteúdo ou níveis de falsidade ou veracidade que determinariam o que estaria no escopo de uma política de combate à desinformação”, afirmou.

Sob nenhuma circunstância, não há a menor possibilidade de que a AGU atue de forma contrária à liberdade de expressão, de opinião e ao livre exercício da imprensa

Advocacia-Geral da União (AGU), em nota.

Por ora, de acordo com o decreto de Lula, compete ao órgão da AGU representar o governo, “judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento da desinformação sobre políticas públicas”. O texto diz, ainda, que cabe à Procuradoria “promover articulação interinstitucional para compartilhamento de informações, formulação, aperfeiçoamento e ação integrada para a sua atuação”. Além disso, o órgão deve “planejar, coordenar e supervisionar a atuação dos órgãos da Procuradoria-Geral da União nas atividades relativas à representação e à defesa judicial da União em matéria eleitoral”.

Um passo atrás

De acordo com o professor de Direito Eleitoral e Digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie Diogo Rais, o debate deveria dar um passo atrás. “Talvez a gente esteja preocupado em definir juridicamente o que é desinformação, mas não tenha se preocupado em fazer uma distinção que é fundamental sobre se aquele determinado conteúdo se refere a um fato ou a uma opinião”, disse. Rais afirmou, porém, que nada impede a AGU de se dedicar ao tema: “O papel específico da Procuradoria é entrar com os pedidos. A dificuldade de definir especificamente não afasta a pretensão”.

O cientista político Emerson Cervi, da UFPR, afirmou que a AGU deve atuar estritamente em temas relacionados a políticas públicas. “Não cabe ao órgão do governo acionar ninguém sobre desinformação geral, mas é obrigação esclarecer sobre políticas públicas. Há uma competência clara”, disse.