“Achou alguma coisa aí, Neto?”/ “Rapaz, é um golfinho. Vi uma dorsal ali perto da pedra e depois outras duas dorsais mais para frente, mas a espécie não deu para ver.” / “Ali, ali. Caraca, cara, é toninha! Na proa. Aponta a câmera, Neto.” Era pouco antes das 10 horas de uma manhã ensolarada e quente de fim de novembro. Fazia quase uma hora que tínhamos zarpado de uma marina em Paraty e navegávamos na Baía de Ilha Grande, litoral sul do Rio. O mar estava calmo, a água, cristalina, mas havia um clima de apreensão no barco.

Os olhos do veterinário Elitiene Santos Neto e do biólogo Rafael de Carvalho estavam grudados no mar, tentando identificar uma nadadeira, um bico comprido, uma cabeça. Era o retorno a campo após um longo período por causa da pandemia.

De repente, a excitação tomou conta. Teriam, enfim, encontrado o que procuravam? As primeiras impressões vieram com dúvida. Seria mesmo? Jornalistas a bordo nem sequer enxergavam o que os olhos treinados tinham identificado como cabeças e nadadeiras dorsais. As aparições eram tão rápidas e discretas que poderiam ser facilmente confundidas com a ondulação do mar. Mas logo veio a confirmação.

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Naquele 24 de novembro, pela primeira vez para a ciência, um grupo de cientistas avistava de modo consistente – com registros fotográficos e observação por mais de uma hora – uma população de toninhas na região de Paraty. Não à toa, são chamadas de golfinho invisível.

A pequena espécie é considerada criticamente ameaçada de extinção pelo Ministério do Meio Ambiente e é muito difícil de ser observada. Grupos do cetáceo são conhecidos mais ao sul, em Ubatuba (SP), e também ao norte do Rio, mas não havia comprovação de que viviam em Paraty. Estimam-se 20 mil toninhas no País.

Tímidas e assustadas, fogem do barulho do motor e não são afeitas a estripulias ao lado de embarcações – como seus primos golfinhos mais conhecidos. Um deles, o boto-cinza (Sotalia guianensis), vive na região e chama mais a atenção – alguns pescadores até imaginavam que toninhas seriam apenas filhotes do boto. O tom bege acinzentado, meio marrom, também não ajuda na visualização.

Mesmo pesquisadores especializados na espécie (Pontoporia blainvillei) no Brasil relatam ter passado anos estudando o bicho só com corpos encontrados em praias antes de conseguirem ver um vivo nadando – na maior parte das vezes em sobrevoos. De perto, como aconteceu naquela dia 24, é realmente raro. O jornal O Estado de S. Paulo presenciou o momento com exclusividade.

Ameaça

O encontro, resultado de longa investigação e uma pitada de sorte, ocorreu em uma área marcada por polêmicas. A baía onde as toninhas foram vistas tem uma pequena parte da sua área protegida pela Estação Ecológica (Esec) de Tamoios, que o presidente Jair Bolsonaro tem planos de extinguir para criar o que chama de “Cancún brasileira”, em referência a um polos turístico do Caribe.

Foi ali que Bolsonaro foi multado em R$ 10 mil pelo Ibama em 2012, por pescar ilegalmente. Do tipo mais restritivo que existe, a unidade de conservação federal não permite permanência nem pesca, mas autoriza pesquisas científicas, como a das toninhas. Sua criação, porém, não foi motivada especificamente para a conservação. Foi estabelecida em 1990 para atender dispositivo legal que prevê que usinas nucleares estejam em áreas delimitadas como estações ecológicas.

Ao lado de onde avistávamos toninhas ficam as usinas de Angra 1 e 2. As ilhas, ilhotas, lajes, rochedo que ocorrem na Baía de Ilha Grande, assim como o entorno marinho, no raio de um quilômetro, são protegidos. Ao todo a Esec representa pouco mais de 5% da área da baía, mas há planos para que toda a proteção seja suspensa.

Unidades de conservação podem ser criadas com decretos presidenciais, mas para serem mudadas ou extintas é preciso passar pelo Congresso. No fim de 2019, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, apresentou projeto de lei para criar na região a Área Especial de Interesse Turístico Costa Verde, que revoga o decreto de criação da Esec.

O projeto entrou em tramitação este ano, mas foi paralisado com a pandemia. Paralelamente, Fernando Jordão (MDB), prefeito de Angra dos Reis, cidade margeada pela Esec, entregou em julho outra proposta para mudar parâmetros da unidade, a fim de permitir a construção de píeres em hotéis e, segundo ele, favorecer o turismo.

A descoberta de uma população de uma espécie tão ameaçada na Baía da Ilha Grande lança um novo alerta sobre esses projetos. “A Esec Tamoios teve papel fundamental no achado e na manutenção dessa população. Percebemos que elas estão usando a área costeira, que é protegida e onde não pode ter pesca”, diz o oceanógrafo José Lailson Brito Junior, do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua) da Universidade do Estado do Rio (Uerj).

Ele é responsável pelas pesquisas, parte do Projeto Conservação das Toninhas. Lailson não estava no barco no dia 24, mas dois dias depois ele foi a uma praia próxima, desta vez com drone, e fez uma nova observação das toninhas na mesma área onde tínhamos feito o avistamento.

A principal ameaça às toninhas é a pesca com rede – elas não são o alvo, mas são capturadas de forma acidental. De rostro (bico) comprido e com muitos dentinhos, esses cetáceos se enroscam nas redes de emalhe e morrem afogadas, sem conseguir subir à superfície para respirar. Daí a importância de viverem em uma região em que conseguem ficar longe da pesca.

Esses golfinhos começaram a chamar a atenção no sul do Rio no início dos anos 2000. Na época, já se sabia que o animal se distribuía do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo, mas o conhecimento vinha de modo dramático. Cientistas achavam os bichos mortos na praia, mas só em ocasiões muito específicas conseguiam vê-los na natureza.

“Com essas avistagens, a gente passa a ver a toninha de outra forma. Elas estão lá o tempo todo. Realmente usam a região. Isso é um achado sensacional e abre um campo para a gente acreditar que elas podem estar em outros locais. Precisamos de um olhar refinado para entender sua distribuição”, diz Brito Junior.

Águas claras de Ubatuba

Pouco mais de 70 quilômetros ao sul de Paraty, um outro grupo de toninhas tem fornecido informações valiosas sobre como se comporta a espécie – que por muito tempo chegou a ser chamada de golfinho fantasma por pesquisadores, acostumados a trabalhar somente com o bicho morto.

Nas águas claras e calmas de Ubatuba, a equipe do biólogo Daniel Danilewicz, coordenador do Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars), tem observado as toninhas como nunca antes pela ciência, com o uso de drones e sobrevoo de helicópteros e aviões.

O próprio Danilewicz foi um dos que levou muitos anos até ver uma toninha viva. Ele começou a estudar a espécie em 1992 no Rio Grande do Sul, com animais mortos. Observou uma nadando a partir de um avião, muito rapidamente, só após 12 anos. Mas de perto, com a ajuda de drones, foi em 2016, em Ubatuba.

O pesquisador foi pioneiro no desenvolvimento de uma linha de pesquisa pelo ar para romper a barreira da dificuldade de avistar as toninhas a partir de embarcações. Este método, que é o mais usado para cetáceos, não serve, em geral, para toninhas. Além da timidez delas, as águas turvas comuns no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e Paraná impediam sua visualização.

A ideia de fazer pesquisas em Ubatuba ocorreu porque na região a água é bem clara e calma. Qualquer ondulação também dificulta o avistamento, mas quando o mar está lisinho, elas são vistas facilmente. “Só então comecei a entender as toninhas, e isso foi emocionante. Começamos a derrubar várias ideias que existiam, de que é um bicho solitário, lento. Vimos que é carismático, anda em grupo, se move rápido atrás de peixe, forma família. É maravilhoso, mas ninguém conhecia.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.