17/10/2021 - 12:06
Rosiene Maria da Silva Tavares Fonseca é casada com Antônio Carlos, tem dois filhos e um neto. Seus cabelos são negros, olhos escuros e pele morena. Uma mulher real do agronegócio. Sua propriedade não é grande, mas garante o sustento da casa e de outros oito empregados e seus parentes. A produtora comanda uma das 4,4 milhões de propriedades que compõem a agricultura familiar do Brasil, responsável por gerar renda para 70% dos brasileiros no campo. Mas Rosiene enfrenta um problema: ela é invisível. Não que ela seja uma super-heroína da Marvel. Ela é uma produtora da Floresta Amazônica.
Em suas terras, planta guaraná sob as copas das árvores típicas do bioma tropical. Suas terras ficam escondidas em meio ao emaranhado verde de 7 milhões de km² de uma floresta que se espalha pelo Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana Inglesa, Guiana Francesa e Suriname. Para muitos, um imenso vazio demográfico, improdutivo e economicamente inútil. Ou pior: há quem defenda que os 5,5 milhões de km² que ficam dentro das fronteiras nacionais são um verdadeiro entrave ao desenvolvimento econômico do País. Eles não conhecem Rosiene e não conhecem o potencial econômico da Amazônia em pé.
Não dá para culpá-los integralmente. As estimativas do potencial da bioeconomia da região vão da casa de milhões até trilhões de reais. A diferença das contas é explicada, em parte, pela falta de estudos mais aprofundados e em parte pelo que está enquadrado no conceito. Há quem considere na bioeconomia amazônica somente o uso econômico de bioativos e há aqueles que enquadram também outros produtos e serviços baseados na natureza, como o carbono que, em breve, poderá ser comercializado em forma de crédito no mercado global. Mas em um ponto os especialistas são unânimes: o Brasil desperdiça o potencial econômico da floresta em pé.
OLHOS DA FLORESTA Nem Brasil e nem o agronegócio enxergam em Rosiene uma de suas representantes, apesar do trabalho que realiza. “Trabalhar na Amazônia neste momento em que estamos vendo tanto desmatamento é muito significativo”, afirmou à RURAL. “Somos produtores, trabalhadores. Sermos reconhecidos por isso é muito importante.” O reconhecimento a que se refere, infelizmente, não vem do País. Vem da Coca-Cola. Sim. Há seis anos, a gigante global de bebidas e alimentos resolveu olhar para a Amazônia com outro olhar e tomou a decisão estratégica de usar, exclusivamente, o guaraná plantado na floresta como matéria-prima de seus refrigerantes. Assim nasceu o programa Olhos da Floresta.
A decisão consciente é parte de um plano para tornar a companhia mais alinhada ao que hoje é popularmente conhecido como boas práticas ESG (ambiental, social e de governança). Produzir na Amazônia é algo corajoso e não pode ser romanceado. O começo foi duro. Ao chegar na região os representantes da companhia se depararam com um mercado irregular, cheio de práticas questionáveis. À falta de qualquer documentação, João Carlos Santos, agrônomo e especialista em agricultura da multinacional, soma o fato de que as transações comerciais eram feitas por meio de atravessadores. “Quando nos deparamos com a realidade, a reação imediata foi dizer: assim não dá”, afirmou. Nenhum processo parecia lícito.
“Trabalhar na Amazônia neste momento em que vivemos tanto desmatamento é muito significativo” Rosiene Tavares, produtora
O trabalho para mudar a realidade começou aos poucos. A primeira decisão foi eliminar o intermediário e concentrar as negociações diretamente com as cooperativas e com as associações. Aí veio o segundo problema: a informalidade. “Muitos produtores não tinham sequer CPF. Imagine então pensar em nota fiscal”, disse Santos. A empresa, então, entrou em ação auxiliando a estruturação da governança da cadeia: de emissão de documentos até treinamentos sobre o ritual das assembleias para tomada de decisões cooperadas. “Do preço do guaraná a ser vendido até o que fazer com os recursos provenientes da venda, tudo passou a ser colegiado”.
SUSTENTABILIDADE Em paralelo com os avanços para a formalização da atividade, a empresa começou a entender os modelos de produção do fruto e compartilhar práticas de agricultura sustentável. Novamente, o trabalho foi árduo. “A informalidade era tanta que os produtores não sabiam nem que dia haviam feito a poda das plantas. Quando sabiam, se guiavam pela fase da lua”, afirmou Santos. Foi preciso começar do básico. No início, um tipo de agenda era distribuído aos produtores para que eles anotassem informações como a data da poda, o número de pessoas que trabalharam na colheita, o combustível gasto no transporte da mercadoria. Nela, também havia dicas sobre o uso de fitoterápicos para tratar pragas e manejo de limpeza dos guaranazeiros, entre outras técnicas.
Aos poucos, a empresa percebeu que, em muitos dos casos, a letra na agenda parecia ser de uma pessoa jovem. Daí, surgiu a evolução para um aplicativo. Lançado neste ano em parceria com a agtech gaúcha Elysios, o sistema foi pensado para dinamizar a rastreabilidade dos frutos e tornar o processo de produção mais transparente. Por meio do app, tanto a Coca-Cola como o Imaflora e técnicos da Embrapa, parceiros no programa, conseguem acompanhar quais técnicas de agricultura sustentável os produtores estão utilizando, qual a frequência e resultados. “Hoje, rastreamos planta a planta”, disse Santos. Com tecnologia de georreferenciamento, o aplicativo ainda permite mapear se há desmatamento na área produtiva, se há algum impacto nas Unidades de Conservação ou em reservas legais e quantos pés de guaraná tem em cada propriedade.
Projeto da Coca-ColA profissionaliza a produção amazônica e contribui para mudança socioeconômica da região
O aplicativo surgiu também para equacionar outro problema. A produção do guaraná estava perdendo os jovens para outras atividades e para o tráfico de drogas, muito comum na região, segundo o agrônomo. “Certa vez, uma cooperativa me pediu medalhas para premiar um time de futebol porque o reconhecimento pelo esporte era a única alternativa de manter os adolescentes longe dos traficantes”. Do problema nasceram alguns programas voltados à inclusão dessa população no sistema produtivo. Um deles é o Jovem Viveirista, em que a empresa constrói os viveiros, doa sementes e capacita os participantes a criar mudas para serem negociadas no futuro.
IMPACTO Após seis anos de projeto, o programa Olhos da Floresta registra R$ 10,8 milhões em resultados financeiros distribuídos como renda para os cooperados. Atualmente, a empresa está presente em 14 municípios e atende 112 comunidades, com 350 famílias beneficiadas. A intenção da empresa, de acordo com Rodrigo Brito, gerente de Sustentabilidade da Coca-Cola, é expandir. “Esse é um programa global. Não é filantropia. É a cadeia de um negócio com base no desenvolvimento sustentável. E queremos aumentar nosso impacto”, afirmou. Além da expansão na própria cultura do guaraná amazonense, a empresa já começa a replicar o modelo nas cadeias de erva-mate e laranja.