26/11/2025 - 10:43
Por décadas, o cinema brasileiro avançou, deixando para trás as vozes que mais precisavam ser vistas – e ouvidas. Entre apagamentos históricos, dificuldades de financiamento e ausência nos festivais, duas cineastas negras — Edileuza Penha de Souza e Camila de Moraes — criaram caminhos paralelos, reinventaram estruturas e formaram redes decisivas para que o audiovisual negro florescesse. Hoje, suas trajetórias se consolidam como pilares de uma transformação que já não pode ser ignorada.
Cineasta, professora e pesquisadora, Edileuza Penha de Souza é autora de livros e artigos que se tornaram referência no debate sobre negritude, audiovisual e educação. Entre suas publicações, destaca-se a série Negritude, Cinema e Educação, obra que articula estética, política e formação crítica.
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Sua trajetória como realizadora está profundamente ligada à redescoberta de Adelia Sampaio, primeira cineasta negra do Brasil — cujo nome permanecia, até meados dos anos 2010, praticamente ausente dos estudos acadêmicos e das narrativas sobre o cinema nacional.
A mudança começou em 2014, quando Edileuza idealizou a Mostra Adellia Sampaio, em um edital interno da Universidade de Brasília (UnB), apoiado por políticas federais de incentivo à cultura no ensino superior.
“Propusemos, ainda em 2014, o primeiro Encontro Nacional de Cineastas Negras e, dentro dele, a primeira mostra competitiva de cinema negro Adélia Sampaio. Competitiva porque não havia no Brasil nenhum festival que premiasse cineastas negras. Queríamos reparar esse apagamento.”
A semente desse movimento vinha de seu doutorado, iniciado em 2010, quando pesquisava representações do amor romântico no cinema brasileiro. O incômodo surgiu ao perceber que não encontrava protagonistas negras — e menos ainda diretoras.
“Eu só encontrava o nome de homens. Isso me causou uma angústia enorme. E foi essa angústia que me levou até Adelia. Quanto mais eu pesquisava, mais entendia o quanto essa mulher havia sido apagada.”
Adelia, lembra Edileuza, escreveu seu primeiro roteiro em 1974, dirigiu um longa em 1984 e produziu 72 filmes durante o período do Cinema Novo. Ainda assim, não era reconhecida.
“O apagamento em cima desse corpo negro feminino foi extremamente cruel. Fico feliz que a minha pesquisa tenha contribuído para o boom de reconhecimento de Adelia. Homenagem se faz em vida, e ela merece cada uma.”
Para Edileuza, formação, pesquisa e realização são dimensões inseparáveis:
“Nós, mulheres negras, aprendemos a nos virar nos 30. Sou professora, pesquisadora e realizadora porque tudo está interligado. A inquietação acadêmica me leva à realização, e a realização me leva à formação de público.”
Mesmo com avanços, ela reforça que o setor ainda é marcado por desigualdades estruturais:
“Se Viviane Ferreira só recebeu financiamento estatal para um longa em 2018 — sendo a primeira mulher negra — isso mostra o tamanho da dívida. Adélia teve seu filme negado pela Embrafilme. Até 2016, a Ancine não havia financiado nenhum longa dirigido por uma mulher negra. É urgente falar de reparação.”
Edileuza lembra que a luta no audiovisual está conectada à luta por direitos básicos: “Antes de falar de cinema, eu quero falar de saúde, de saneamento, de educação. O audiovisual faz parte dessa estrutura que sempre negou direitos à população negra.”
Em 2024, durante a 7ª Mostra Competitiva de Cinema Negro Adelia Sampaio, ela celebrou o reencontro com o público e a força coletiva: “Quando a gente se reúne, a gente se aquilomba. Cinema é coletivo. A mostra existe por isso — para provar que não estamos sozinhas.”
Jornalista, cineasta, distribuidora e produtora cultural, Camila de Moraes construiu uma das trajetórias mais emblemáticas do cinema negro contemporâneo. É diretora de A Escrita do Seu Corpo (2016), O Caso do Homem Errado (2017) e Mãe Solo (2021). Seus filmes orbitam entre violências do Estado, maternidades negras, resistências e memória afro-brasileira.
Mas foi com O Caso do Homem Errado — documentário sobre o assassinato de Júlio César por policiais, em Porto Alegre — que Camila desafiou a lógica tradicional da indústria. O filme levou oito anos para ser produzido. Sem o apoio de editais, recorreu ao financiamento coletivo e à parceria com uma produtora gaúcha.
“Foi uma produção independente desde o início. Tentamos editais, não conseguimos. Quando gravamos em 2016, marcamos um ato em maio, no Cine Capitólio. O ato lotou e tornou o filme não inédito — o que fechou portas nos festivais.”
Mesmo com recusas e poucos retornos de mostras nacionais e internacionais, Camila não desistiu. Pelo contrário: reinventou o modelo : “A gente não podia deixar o filme parado. Entramos nos cinemas em março de 2018. Mas não tínhamos distribuidora. Foi aí que criamos a Borboletas Filmes — para conseguir colocar o filme em sala.”
Assim nasceu a Borboletas Filmes, distribuidora negra e independente que se tornou peça-chave para a circulação de obras de realizadores negros no país.
A estratégia itinerante, com sessões em Porto Alegre, Salvador e no Acre, foi, ao mesmo tempo, um esforço monumental e um gesto político.
“Fizemos tudo por conta própria. Cada estreia tinha debate, envio de HD, divulgação, custo de correio. Ficamos um ano nessa luta. É muito difícil sem investimento para distribuição.”
Seu trabalho reacendeu debates sobre racismo institucional na crítica, nos festivais e no circuito comercial, devolvendo o filme ao radar da imprensa e das mostras.
Ainda assim, obstáculos persistem: “Mesmo com cinco longas lançados, minha distribuidora não atinge a pontuação mínima para acessar recursos. Os nossos filmes têm público, têm impacto, mas não são reconhecidos como mercado. Por quê?”
Para enfrentar esse apagamento, Camila criou , por meio da Lei Paulo Gustavo, o Circuito Filmes que Voam, que equipa espaços culturais de Salvador com tela, projetores e som, promovendo sessões semanais de filmes nacionais: “Toda terça, no bairro do Uruguai, eram 70 pessoas por sessão. Isso é público. Isso movimenta a indústria. Como isso não é contabilizado?”
A cineasta defende a revisão urgente dos critérios de distribuição no Brasil:
“Sem recursos para distribuição, não adianta produzir. Como nossos filmes chegam ao público? Como nossas produtoras acessam o setor? A ampliação do circuito exibidor é fundamental para que nossas obras existam de verdade.”
Ambas compreendem o cinema como direito, como reparação e como política pública. Elas dedicam seu trabalho para que novas cineastas não enfrentem as mesmas barreiras.
Edileuza resume: “Quando mulheres negras ascendem, a carreira é de muita solidão. Por isso, o encontro é tão importante.” Camila completa: “Se o caminho convencional não nos acolhe, criamos outro caminho. Mas precisamos de estrutura pública para manter esse caminho aberto.”
Juntas, suas trajetórias mostram que o futuro do cinema negro brasileiro já começou — coletivo, combativo, em expansão.
Uma pesquisa da Ancine (2016) apontava que apenas 2% dos diretores de filmes lançados comercialmente eram negros. Entre roteiristas, o índice era de 4%.
Em 2019, o GEMAA/Uerj revelou que, entre 142 longas brasileiros lançados, apenas um havia sido dirigido por uma mulher negra. Entre 1908 e 2015, dos mais de 2,5 mil filmes brasileiros produzidos, menos de 1% teve protagonistas negros.