A duas semanas da escolha do futuro presidente, postagens com conteúdos apelativos, pautas de costume e desinformação superam discussões sobre fome, desemprego e inflação nas redes sociais. Levantamento feito pelo Estadão mostra o protagonismo de publicações de apoiadores do petista Luiz Inácio Lula da Silva e de Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL, em temas como satanismo, maçonaria e supostas associações com o crime organizado na esteira do “jogo sujo” deflagrado na campanha.

No Facebook e no Instagram, o alcance das postagens é expressivo e reflete a entrada até mesmo de aliados próximos, quando não dos próprios postulantes ao Palácio do Planalto, na pauta do submundo das plataformas digitais em detrimento de propostas de interesse do Brasil. No Twitter, segundo o Monitor de Redes Sociais do Estadão, termos como aborto e maçonaria figuram na lista de mais frequentemente associados aos candidatos, em um universo de 26 milhões de publicações.

Desde a votação em primeiro turno, no dia 2 de outubro, as duas maiores redes – Facebook e Instagram – abrigaram 70,3 mil conteúdos relacionados à guerra travada por Lula e Bolsonaro. Foram mais de 22,6 milhões de interações, que incluem curtidas, comentários e compartilhamentos. O número é quase o dobro do volume de postagens relacionadas a economia e desigualdade social, como o Auxílio Brasil e o salário mínimo, que estão, segundo recentes pesquisas, entre os principais problemas do País na avaliação dos eleitores.

O levantamento sobre as baixarias nas redes sociais considera assuntos em destaque em meio a ataques de lulistas e bolsonaristas durante as primeiras duas semanas de campanha neste segundo turno. Dentre eles estão maçonaria, satanismo, canibalismo, zoofilia, “CPX”, pedofilia, fechamento de igrejas, aborto, crime organizado e comunismo.

O cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Rodrigo Prando disse que há perigo no debate eleitoral calcado em pautas diversionistas. “Há um esvaziamento da própria racionalidade e do sentido democrático de propostas a um projeto de país. Fake news e teorias da conspiração dominam o ambiente e deterioram o aspecto democrático”, afirmou Prando.

Sobram episódios nesse sentido. O ex-presidente Lula, por exemplo, foi alvo de ataques a respeito de uma relação inexistente com o satanismo por meio de um vídeo de um usuário dito “luciferiano” no TikTok, aplicativo de vídeos. O homem aparece com uma bandeira do candidato ao fundo. O petista se defendeu ao dizer que é cristão.

Na sequência, opositores do atual presidente recuperaram um vídeo antigo em que Bolsonaro pede apoio em uma loja maçônica, em Volta Redonda, interior do Rio, antes da campanha eleitoral de 2018. “Urgente: satanistas ateus da maçonaria pedem que Bolsonaro seja eleito para representá-los!”, escreveu o deputado federal André Janones (Avante-MG), em uma postagem com mais de 6 mil compartilhamentos no Facebook.

Janones é hoje um dos principais cabos eleitorais de Lula nas plataformas digitais. O parlamentar tem disseminado ataques, entre eles homofóbicos, sob a alegação de usar as mesmas armas adotadas pelo bolsonarismo. Procurada pela reportagem, a assessoria do deputado afirmou que ele apenas reproduziu o que a população pensa sobre a maçonaria e que não há como provar que espalhou “fake news”.

Para o cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rafael Sampaio, o resultado das urnas no primeiro turno acendeu uma luz vermelha na esquerda, o que levou ao abraço definitivo das estratégias de Janones. A reação, no entanto, contém riscos. “Agora também estão correndo fake news de esquerda. Não podemos dizer na mesma medida das bolsonaristas, mas se aceitou cruzar essa linha”, disse Prando. “Esse discurso encontra espaço para pessoas que levam para o cotidiano essa violência que sai do campo retórico.”

No dia 2 de outubro, Lula obteve 48,4% dos votos válidos ante 43,2% de Bolsonaro – número bem superior ao apontado pelas principais pesquisas eleitorais. Nesse cenário, Bolsonaro ainda precisou lidar com a viralização de uma entrevista ao jornal americano The New York Times, concedida em 2016, na qual ele afirma ter cogitado comer carne humana em um suposto ritual indígena, e a de outra a um programa de TV em que diz que “todo mundo ia na minha cidade” atrás de animais a fim de praticar sexo.

O suposto canibalismo chegou a ir ao horário eleitoral na TV e no rádio e foi retirado por ordem da Justiça. Segundo a defesa do presidente, o conteúdo foi descontextualizado.

Apoiadores do atual presidente, por sua vez, constantemente associam o PT ao crime organizado e à perseguição religiosa, o que é contestado pelo partido. Bolsonaro também replica a estratégia de ataque ao destacar que presos votam em Lula. Na investida mais recente, houve compartilhamentos de uma foto de Lula em visita ao Complexo do Alemão, no Rio, com um boné com a sigla “CPX” – uma abreviação para o conjunto de favelas cariocas.

“Lula visita QG do Comando Vermelho no Alemão, RJ, e usa boné que significa cupinxa (sic) (parceiro) do crime”, mostra postagem compartilhada pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), marcada como informação falsa pelo Facebook. A deputada justificou ao Estadão que a sigla também é usada entre criminosos para designar comparsas e que é contra a divulgação de mentiras.

Dados do Google Trends mostram também que as pesquisas relacionadas que mais cresceram sobre os dois candidatos envolvem falsidades e teorias da conspiração, não propostas para o País. Buscas sobre Lula que tiveram maior alta reproduzem uma notícia falsa sobre o número de votos no petista em Barreiras (BA) e o associam ao satanismo, enquanto procuras sobre Bolsonaro ligam o presidente à maçonaria e ao canibalismo.

De acordo com o professor de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Viktor Chagas, essa estratégia de constantes ataques mútuos implica uma mobilização “sem fim” de diferentes agendas diariamente. “É como se precisasse manter todo mundo em um estado de alerta perene para que os eleitores possam continuar engajados na campanha”, disse. As duas campanhas oficialmente produzem “missões” diárias para os usuários compartilharem. Procuradas, não responderam.

Chagas disse que esse vale-tudo pode seguir nas próximas eleições. “Estamos vivenciando esse tipo de campanha pelo menos desde 2018. O que vemos agora é que alguns setores do campo progressista resolveram embarcar nesse campo de ação”, afirmou o pesquisador.

A religião, nesse caso, costuma ser um terreno fértil para emplacar discursos com desinformação e tentar aumentar a rejeição a candidatos. “As redes sociais funcionam numa lógica de ação e reação. Quando um lado consegue dominar o debate com uma pauta, o outro acaba respondendo com uma contranarrativa”, disse Andressa Costa, pesquisadora do Centro de Administração e Políticas Públicas da Universidade de Lisboa (CAPP/ISCSP). “Considerando que a disputa está apertada, esse espaço da internet é algo que os dois lados visam pelo seu impacto.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.