A Justiça francesa absolveu nesta segunda-feira, 17, a fabricante europeia Airbus e a companhia aérea Air France pelo acidente do voo AF447, que fazia a rota Rio-Paris em 2009, há quase 14 anos. Os 216 passageiros e 12 tripulantes a bordo morreram. O tribunal de Paris absolveu as duas empresas da acusação de homicídio culposo (quando não há a intenção de matar) por considerar que, embora tenham cometido “falhas”, não foi possível demonstrar “relação de causalidade” segura com o acidente.

Quando os juízes leram a decisão, ouviram-se soluços entre os familiares das vítimas presentes na Corte na capital francesa. O anúncio da absolvição fez com que algumas partes civis se levantassem, surpresas, enquanto o presidente do júri continuava sua leitura sob um silêncio sepulcral. Na fase final, que aconteceu de 10 de outubro a 8 de dezembro, o Ministério Público francês já havia pedido absolvição de empresas, por considerar que é “impossível demonstrar” a culpabilidade.

Esta foi uma requisição “que as partes civis não aceitaram, (pois) aponta exclusivamente contra os pilotos e a favor de duas multinacionais”, criticou antes do julgamento Danièle Lamy, presidente da associação Entraide et Solidarité AF447 (Cooperação e Solidariedade AF447), que representa os parentes das vítimas.

Durante todo o julgamento, os representantes da Airbus e da Air France alegaram que as empresas não cometeram nenhum crime. Os advogados pediram a absolvição, uma “decisão humanamente difícil, mas técnica e juridicamente justificada”, segundo a Airbus.

O tribunal considerou que a Airbus cometeu “quatro imprudências ou negligências”, em particular por não ter substituído os modelos de sondas pitot chamadas “AA”, que pareciam congelar com maior frequência nos aviões A330 e A340, e por “reter informações” a respeito. Na esfera criminal, no entanto, segundo o tribunal, “uma relação de causalidade provável não é suficiente para tipificar crime.”

Indenização

Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam que a decisão não significa que os familiares das vítimas perderam o direito à indenização. “Se fosse no Brasil, essa ação nem estaria correndo porque não caberia a responsabilidade criminal, nesse caso, às duas empresas”, diz Gracemerce Camboim, professora de Direito Internacional da Faculdade Presbiteriana Mackenzie.

“Não há um impedimento para que as vítimas recebam indenização porque essas ações visam ao reparo de responsabilidade civil. Mas pode sim influenciar em outras sentenças, porque na esfera criminal não se estabeleceu um nexo de causalidade”, afirma Priscila H. Viola Zangiácomo, sócia do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados. Ela observa que, entre as famílias das 53 vítimas brasileiras, algumas já conseguiram ser indenizadas, com valores de até R$ 1,7 milhão, apesar de Air France e Airbus ainda recorrerem da decisão.

O que aconteceu

O avião caiu em 1.º de junho de 2009 no Oceano Atlântico. A investigação oficial concluiu que vários fatores contribuíram para a tragédia, como erro do piloto e congelamento dos sensores. Os primeiros fragmentos do AF447, assim como os corpos, foram encontrados nos dias que se seguiram ao acidente. Mas o avião foi localizado apenas dois anos depois, após longas buscas, em meio ao relevo submarino, a 3,9 mil metros de profundidade.

Com robôs, foi realizada uma minuciosa operação para o resgate. As buscas foram encerradas no fim de 2011 com a retirada do oceano de 154 corpos. O reconhecimento foi feito com exames de DNA.

As caixas-pretas confirmaram o ponto de partida do acidente: o congelamento das sondas de velocidade pitot, enquanto o avião estava em voo de cruzeiro, em uma zona com condições meteorológicas adversas. Desestabilizado pelas consequências dessa pane, um dos pilotos adotou uma trajetória ascendente e, sem compreender o que se passava, os três navegadores não conseguiram recuperar o controle da aeronave, que se precipitou no oceano apenas 4 minutos e 23 segundos depois.

As investigações demonstraram que incidentes similares com sondas se multiplicaram nos meses que antecederam o acidente. A Airbus havia se defendido do mau funcionamento de sua aeronave, alegando que o modelo do medidor pitot, da companhia francesa Thales, usado pelo avião acidentado, estava em fase de substituição pelos da Goodrich, de fabricação americana.

Mudanças

Depois da catástrofe, o modelo da sonda foi substituído no mundo inteiro. A tragédia, que marcou a comunidade dos pilotos, levou a outras modificações técnicas e a uma formação reforçada sobre estol (perda de sustentação) e estresse das tripulações.

‘O legado é de destruição, não só financeira, mas emocional’, diz pai

A decisão da Justiça francesa foi recebida com surpresa por familiares das vítimas. Ao Estadão, Nelson Faria Marinho, diretor da Associação das Vítimas do Voo 447, afirmou que o legado deixado com a absolvição é de “destruição”. Para ele, há “parcialidade” na decisão em razão de o julgamento ocorrer em território francês, uma vez que a fabricante e a companhia têm a França de origem.

“Não esperava essa decisão. A gente sempre tem aquela esperança de que a coisa vai caminhar diferente. A França não é séria. Esperava que eles fossem condenados. A Air France por não ter a decência de manter regularmente a manutenção no avião e a Airbus, por ter fabricado um avião assassino e continuar voando”, diz ele.

Na tragédia, Marinho perdeu o filho, Nelson, na época com 40 anos. “O legado que deixaram foi de destruição, não só financeira, mas emocional. Você me fazendo essa pergunta hoje, parece que o acidente foi ontem. Isso vai se arrastar para o resto da vida. Eu já perdi pai, mãe, irmãos, mas a perda do filho não consigo traduzir em palavras.”

De acordo com ele, a expectativa era de que a Justiça reconhecesse possíveis problemas técnicos na aeronave, e não com pilotos. Marinho esteve na França, conversou com profissionais da área, e o que ouviu foi que o avião era “problemático”.

Na França

O sentimento de Marinho é compartilhado por outros parentes de vítimas do acidente aéreo. “Esperávamos um veredicto imparcial, não foi o caso. Estamos enojados”, disse Danièle Lamy, da Entraide et Solidarité AF447. “Desses 14 anos de espera, nada resta além de desesperança, consternação e raiva”, afirmou. “Eles nos dizem: ‘Responsável, mas não culpado’. E é verdade que esperávamos a palavra ‘culpado'”, disse Alain Jakubowicz, advogado da associação. “Não faz sentido para mim”, reagiu com a voz trêmula Ophélie Toulliou, que perdeu o irmão no acidente, compartilhando seu “sentimento de injustiça”.

Notas

Já a Air France divulgou nota em que afirma que “a empresa sempre se lembrará das vítimas deste terrível acidente e expressa sua mais profunda compaixão a todas as suas famílias”. A Airbus manifestou sua “compaixão” e o seu “compromisso total (…) em matéria de segurança da aviação”. Mas ressaltou que a decisão da Justiça francesa foi “coerente”. (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.