15/01/2025 - 10:38
Dados do monitoramento do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) mostram que o número de mortes decorrentes de intervenção policial, no ano passado, foi o maior da década. Os números indicam aumento de 65% de mortes, de 542 para 835, entre 2023 e 2024. O menor número registrado na série histórica, alimentada desde 2017, foi em 2022, com 477 mortes.
A Polícia Militar, força com maior efetivo no estado, também é responsável pela maior parte das mortes, o que de certa forma é esperado por ser uma instituição que tem entre seus objetivos a abordagem direta em situações de violência urbana. Quando isolados, os dados relacionados à Polícia Militar (PM) paulista mostram aumento semelhante. Em 2023 foram 460 mortes, passando para 760 em 2024, aumento de 60,5%.
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As mortes decorrentes de ação de policiais fora de serviço ficaram estáveis, com pouco mais de uma centena de registros, desde 2020, ano em que teve 796 mortes por intervenção de policiais militares no estado.
O peso da PM nesse índice também vinha em queda. Em 2020, 93% das mortes foram causadas por policiais militares. Em 2022 foram 83%, aumentando para 84% em 2023 e 91% no ano passado.
A prevalência de mortes ocasionadas por intervenção de policiais em serviço tem relação direta com o início do mandato do governador Tarcísio de Freitas, que assumiu em 2023, após uma campanha em que valorizava o papel da intervenção do policial militar em situações de conflito como elemento central nas políticas de segurança pública.
Desde o atual governo, a Secretaria de Segurança Pública, órgão de governo responsável pela corporação, é comandada pelo capitão PM Guilherme Derrite, defensor do policiamento ostensivo e do uso de armamento letal e de armas pesadas no dia a dia da força.
A gestão Derrite é marcada pela sucessão de operações com uso de batalhões especializados, como a Rota e os Baeps, que são unidades com uso de armamento pesado, e pela sucessão de operações de saturação de policiamento, como as operações Escudo e Verão.
Para Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, essa sucessão de aumentos indica que a gestão atual mantém o discurso do conflito, “que coloca o policial em uma situação de guerra, com um discurso que é ruim para todo mundo, é ruim para o policial, que têm morrido mais em serviço no estado no último ano, é ruim para a população, evidentemente, e só é bom para quem profere esse tipo de discurso”, diz o pesquisador.
Essa lógica do confronto, explica, leva a uma sucessão de casos que beiram o grotesco, com uso de violência excessiva, inclusive contra pessoas desarmadas e crianças. “Com esse acúmulo de casos começa a ter uma mudança na opinião pública, e até no próprio discurso do governador”, o que para Rocha acena para uma possibilidade remota de melhora, pois o governador ainda mantém seu secretário e os oficiais que estão no comando da corporação.
Tarcísio tem acenando, principalmente nos últimos dois meses, para uma postura mais apaziguadora em relação às câmeras corporais e para a realização de cursos de reciclagem para policiais. “A segurança pública não precisa ser assim. É claro que vai ter momentos que vai ter violência, é claro que vai ter momentos que o uso da força, inclusive letal, vai ser necessário, não dá pra ser que imaginar que a gente vai ter uma polícia como a de São Paulo, um estado como São Paulo, e não vai ter nenhuma morte num mês, num ano, mas a gente viu recentemente, em 2022, que dá pra ser um número muito menor do que é hoje”, conclui Rocha.
Outro órgão da sociedade civil que acompanha o tema, a Organização Não Governamental Conectas teve parte de seus especialistas acompanhando as operações Escudo e Verão nos últimos dois anos. Carolina Diniz, coordenadora de enfrentamento à violência institucional da instituição, também atribui esse aumento à postura dos comandos, político e corporativo.
“Quando o governador do estado de São Paulo, ainda como candidato, colocava em xeque a eficácia das câmeras corporais, nomeia, assim que assume, um secretário de Segurança Pública que tem um histórico de violência e que tem dito, ao longo da sua trajetória, de que o bom policial é aqueles que têm pelo menos três mortes no seu currículo, isso é uma diretriz para atuação do que se espera de um policial militar”, diz. Essa postura, segundo Diniz, reflete em quem está na rua, no dia a dia, e indica que o policial terá mais chances de receber, por exemplo, uma condecoração do que uma investigação após uma situação que leve à morte de alguém, comprovadamente criminoso ou não.
Ela entende que houve o esvaziamento de ferramentas que poderiam atuar para diminuir a letalidade, desde um uso correto das câmeras corporais, capaz de coibir abusos, até o enfraquecimento de mecanismos de controle e da participação da sociedade civil na gestão das políticas de segurança no estado.
A coordenadora aponta que o papel de órgãos de controle como o Ministério Público e a Procuradoria Geral de Justiça estadual, com grande peso na condução de investigações sobre abuso de uso de força e letalidade foi impactado.
“Atualmente, não há mais uma diretriz para instauração de procedimentos investigatórios criminais em casos de letalidade policial. Policial, ao contrário do que recomendou a Corte Interamericana de Direitos Humanos nas últimas decisões contra o Estado brasileiro, que, enfim, impede que as investigações sejam conduzidas de forma independente. Hoje não há mais uma recomendação expressa para instauração de PICs individualizados e a gente lamenta muito que isso não esteja acontecendo”.
A medida que pode estar relacionada, segundo Diniz, à grande quantidade de inquéritos arquivados entre as mortes investigadas na Operação Escudo. O Conectas fez parte de um grupo de instituições da sociedade civil que criticou inclusive a forma como as investigações dessas mortes foram realizadas pelas polícias, sem observar padrões internacionais como os estabelecidos nos protocolos de Minnesota e de Istambul, relacionados à investigação e ao combate à tortura.
O caminho para os que defendem a importância desse controle social, segundo Diniz, é a valorização de instituições independentes, como a ouvidoria das polícias, e das comissões de mitigação, que articulam judiciário, defensoria pública, sociedade civil e governo estadual, mas que tem sido esvaziada pelo último desde 2023, segundo a pesquisadora.
A participação em outros fóruns, externos à corporação policial, como os conselhos estadual e nacional de Direitos Humanos, assim como a participação de órgãos internacionais como a ONU e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, também têm contribuições importantes para cobrar do Estado políticas que pensem melhor a importância de intervenções menos violentas de seus agentes. “Enfim, demandando todas as esferas para que a gente consiga algum tipo de controle no estado de São Paulo, controle e responsabilização”, conclui Diniz.
Posição do governo estadual
Procurado, o governo do estado de São Paulo e sua Secretaria de Segurança Pública se manifestaram sobre o assunto através de nota: “A SSP ressalta seu compromisso com a legalidade, transparência e respeito aos direitos humanos fundamentais. A pasta não compactua com excessos ou desvios de conduta, punindo exemplarmente aqueles que infringem a lei e desobedecem aos protocolos estabelecidos pelas forças de segurança”.
Ainda de acordo com a nota, “todos os casos de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) são dessa natureza são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Nos casos em que essa dinâmica não é comprovada na investigação, os agentes envolvidos são punidos conforme determina a lei. Desde o início de 2023, mais de 300 policiais foram demitidos e expulsos, e mais de 450 agentes foram presos”.
O documento diz ainda que “para reduzir a letalidade policial, a corporação segue investindo no aprimoramento do efetivo por meio do seu programa de formação continuada, com capacitações práticas e teóricas, e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo. Somado a isso, comissões direcionadas analisam casos desta natureza e ajustam procedimentos de abordagem”.
Um país com mentalidade violenta
Embora não haja um levantamento nacional em tempo próximo do real semelhante ao do Gaesp MP-SP, os últimos levantamentos setoriais têm demonstrado que a tendência à violência institucional não são exclusividade da corporação da PM paulista.
Rocha aponta que, embora estados como o Rio de Janeiro e a Paraíba tenham melhorado seus índices, com queda da letalidade, outros como a Bahia e Minas Gerais têm piorado.
“O que a gente tem visto é um discurso, acho que como um todo na sociedade brasileira, que a polícia tem que matar. Está disseminado na sociedade brasileira e tem efeitos no policial que está na ponta, no policial que sai todo dia para trabalhar”, diz o porta-voz do Instituto Sou da Paz.
Para ele, o Ministério da Justiça e o Governo Federal como um todo tem começado a atuar contra isso, “ainda de maneira muito tímida, mas estabelecendo diretrizes no controle do uso da força, diretrizes para a abordagem com câmeras operacionais”.
Medidas que, para ele poderiam ser mais efetivas se relacionassem a redução da letalidade a, por exemplo, o acesso aos repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública pelos Estados. “E acho que é uma compreensão dos governadores que é preciso sim implementar mecanismos de controle da força, profissionalizar suas polícias para que elas tenham melhores resultados. Não só para que elas matem menos, mas que elas consigam diminuir os indicadores de criminalidade e ter mais confiança da população”, completa Rocha.