31/12/2020 - 13:12
Para entrar em lojas era obrigatório o uso de álcool em gel. Os clientes tinham a temperatura medida e o distanciamento social foi adotado pelo país como forma de se conter a transmissão do vírus, contra o qual não havia remédio ou vacina. Nada de abraços, apertos de mão. O major Ivan Werberich teve de cumprir todas essas medidas antes de a covid-19 aparecer. Foi no surto de ebola na África Ocidental, em 2015.
O maior surto da história da doença começou em Gana e atingiu dez países em três continentes, com casos nos Estados Unidos e na Europa, e que deixou 11.323 mortos após o vírus infectar 28.643 pessoas. Ao todo, 6 mil crianças perderam o pai, a mãe ou ambos. Foi no meio desse pandemônio que o major foi trabalhar como capacete azul das Nações Unidas.
Werberich trabalhava na Unmil, a força de paz que buscava estabilizar a Libéria, depois que o país foi quase destruído por duas guerras civis. “Fui nomeado para a missão em 2014, justamente quando começou o ebola no país.” O militar lia as notícias sobre a letalidade do vírus, que chegava a matar 70% dos infectados. “Em duas semanas ou você tinha falecido ou sobreviveria ao vírus.” Ele recebia ainda notícia de colegas brasileiros que estavam na força de paz quando a crise começou. “Eu me preparava espiritualmente, e minha família ficava bem apreensiva pelas coisas que eu ia enfrentar lá.” Casado, Werberich tem duas filhas que, na época, tinham seis e três anos.”Elas só sabiam que eu iria me ausentar por muito tempo.”
Antes de embarcar recebeu instruções sobre o ebola. “Tomei umas vinte vacinas antes de embarcar para evitar todo tipo de doença. Depois ainda me deram remédio contra malária, protetor solar e repelente.” Na epidemia, três capacetes azuis morreram infectados pelo vírus. Ao desembarcar na Libéria em 24 de março, o major logo teve a temperatura tomada na descida do avião. Outro procedimento obrigatório era lavar as mãos em uma solução de água e cloro. “O país já estava adaptado ao protocolo. Tudo o que agora está sendo feito contra a covid-19 eu já havia conhecido de forma muito mais intensa.”
Werberich foi designado para um posto no epicentro da epidemia, o condado de Lofa, no norte do País, na fronteira com a Guiné. Com o brasileiro ia um militar paquistanês, com quem ele iria conviver na base da missão. Ao chegar a Voinjama, a capital de Lofa, tudo lhe pareceu precário. O comércio era feito em tendas e os mais idosos acreditavam que o ebola era uma invenção, uma mentira. “A maioria da população acreditava, mas até mesmo no caso do ebola havia quem negasse a existência do vírus. Não é só na covid-19.” E o major logo compreendeu que uma das novas funções de sua missão era dizer às pessoas que o vírus era real.
“Tínhamos de dizer que as medidas de profilaxia deveriam ser mantidas. Distribuíamos kits, folders e baldes com clorin para que fosse feita a limpeza das mãos e para evitar o contágio. Diversas vilas e vilarejos não tinham acesso a essas informações.” Havia lugares cuja população havia sido dizimada pela doença. Outros cujos moradores buscaram refúgios em povoados vizinhos, deixando tudo para trás. “Entrava em uma vila com oito, nove casas e todas elas vazias, sem ninguém morando. Encontrei várias vilas assim. E vi o quão devastadora foi a doença no interior.”
O major fazia patrulhas no entorno de Voinjama. Teve como companheiro na primeira delas o oficial paquistanês com quem viajara e um guia local, que falava o dialeto do lugar. No caminho do vilarejo que buscavam, o guia alertou os militares que estavam passando por uma das vilas dizimadas pelo ebola. Werberich e o paquistanês perguntaram ao guia se podiam parar. Queriam observar o lugar. Havia nove casas de pau a pique e telhados de palha. Todas vazias. Utensílios domésticos, como panelas, haviam sido deixados para trás. O major entrava nas casas sem tocar em nada. O terreno era cercado por uma mata tropical. “Aqui não sobrou ninguém” disse o guia.
“Por mais que você esteja preparado, ver isso deixa você chocado. Não havia vacina. Nosso pior inimigo era o vírus, não era nenhum grupo armado”, disse o major. A Libéria seria declarada livre do ebola no fim de 2015.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.