23/10/2022 - 8:00
O professor da Unicamp Marcos Nobre identifica uma singularidade na política atual: não estamos diante de uma polarização, mas de uma divisão que ocorre quando as regras do jogo parecem não mais serem suficientes para resolver os conflitos. Para ele, é necessário a construção de um novo pacto, que isole o extremismo. “É preciso reconstruir a direita democrática”, afirmou. A seguir, trechos da entrevista.
Professor, o sr. diz que não vivemos mais uma polarização, mas uma situação de divisão do País. Por quê?
A situação que a gente tem hoje é de divisão. Não existe um acordo sobre qual seja o campo em que deve ser jogado o jogo. Há uma divisão profunda nas sociedades, não só no Brasil. Isso vai ter um reflexo nas saídas. Como você não tem mais a democracia como campo comum não há mais elementos a partir dos quais os conflitos podem ser elaborados. É uma situação limite. A democracia está em estado de emergência. Tem duas saídas para isso. A primeira é a emergência democrática se tornar resistência democrática, com a vitória do autoritarismo típico dos anos 2010, que é um autoritarismo eleitoral, que fecha o regime desde dentro a partir de sucessivas eleições e transformações legislativas e da composição da Suprema Corte. Essa é uma saída em que uma parte impõe à outra o seu conceito de mundo. Como seria a saída progressista? Ela é ao mesmo tempo preservar as instituições democráticas, mas sabendo que elas precisam ser reformadas. Não pode ser uma volta ao passado.
Qual a importância das realidades regionais para a divisão do voto no Brasil?
Quando a gente olha o País por região ou por Estado, muitas vezes a gente diz que aquele lugar é lulista ou bolsonarista. Mas uma diferença em Minas de 5% pró-Lula não faz de Minas um Estado petista. Há uma divisão do País que não é regional, mas por outras categorias. Antes de tudo econômica: quanto mais rico, mais vota no Bolsonaro e quanto mais pobre mais vota em Lula. Desde 2018 surgiram outras duas divisões importantes: a religiosa e a por sexo. Esta última já foi maior: as mulheres votam menos em Bolsonaro do que homens. Na religiosa, a posição de Lula entre católicos e a de Bolsonaro entre evangélicos se invertem na preferência. Essas divisões não são regionais.
Qual o papel do partido digital bolsonarista na mudança do cenário de polarização para divisão do País?
Fundamental. O partido digital bolsonarista é aquele que conseguiu consolidar a divisão. Isso tem muito a ver com o fato de que, globalmente, onde tem democracia, a extrema direita foi a que melhor soube usar o mundo digital para contornar os portões, filtros e obstáculos do establishment democrático: a academia, a imprensa e o parlamento.
Nesta eleição, a esquerda criou seu partido digital?
Não. Nem de longe, porque um partido digital é algo que se constrói ao longo de anos.
O partido digital foi fundamental para a extrema direita hegemonizar as forças de direita no País?
Exatamente. Estamos nessa divisão porque a direita brasileira está hegemonizada pela extrema direita. Para a democracia sobreviver, se o pacto progressista for proposto e conseguir incorporar uma parcela maior da população, ele vai ter de produzir uma direita que seja capaz de disputar com a extrema direita a hegemonia.
A existência de dois antagonismos, o antipetismo e o antibolsonarismo, é parte da singularidade atual?
É por isso que não é polarização e sim divisão. Quando tem divisão, você tem dois campos. Eles não se definem só por oposição a outro, mas também em termos de valores e expectativas em relação ao mundo e ao futuro. Para uma reorganização democrática, precisaríamos voltar a algum tipo de polarização.
O modelo italiano do pós-guerra, que isolou comunistas de um lado e neofascistas do outro, seria viável?
Seria inviável porque você tem o bolsonarismo muito forte, tanto em termos de organização e mobilização como no Congresso. A médio e longo prazo, a esquerda e a direita democráticas têm de construir um acordo para isolar a extrema direita. Vamos ter de conviver com a ameaça extremista bolsonarista durante muito tempo.
Para a democracia ser funcional deve-se reconstruir a direita democrática?
Sim. É preciso reconstruir a direita democrática. Em todos os lugares onde a democracia se implantou após a 2ª Guerra Mundial havia um acordo implícito entre a esquerda e a direita democráticas de isolar a extrema direita. Aqui no Brasil não só esse acordo não houve como a extrema direita chegou ao poder.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.