Há 20 anos, em junho de 2002, começava no Vale do Javari a última grande expedição indigenista na Amazônia. Uma equipe de 35 indígenas e ribeirinhos, chefiada pelo sertanista Sydney Possuelo, atravessou a selva durante 105 dias para combater invasões no território habitado por 16 grupos isolados. Entre os mateiros que ajudavam na abertura de trilhas e na construção de canoas estava um ribeirinho que cometeria um dos crimes de maior repercussão da história recente da floresta.

O pescador Amarildo Costa de Oliveira, o Pelado, que na época da expedição tinha 21 anos, confessou ter executado o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. O assassinato completa um mês na terça-feira e com as circunstâncias sob investigação. Indígenas apontam crime de mando. A Polícia Federal chegou a descartar a hipótese, mas voltou atrás.

Da expedição de Sydney para cá, a rede criminosa da pesca e do garimpo se sofisticou com recursos do narcotráfico na tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia. O esquema de drogas e armas capturou comunidades ribeirinhas ao redor do território dos isolados. Pelado morava numa delas, a São Gabriel, onde um certo Rubens Villar, o Colômbia, que a polícia procura, controla a venda de pescados clandestinos.

“O que leva um jovem que participou daquela viagem a cometer um assassinato 20 anos depois? Não acompanhei a vida dele”, disse Sydney. “Talvez as condições às quais um homem é submetido podem impulsioná-lo para certas coisas. A vida dos ribeirinhos é difícil.”

Sydney disse ver indígenas e ribeirinhos como brasileiros afetados por um processo injusto de País. “Talvez o narcotráfico e a pesca ilegal sejam as únicas oportunidades. A gente não tem resposta para o caso desse rapaz. Se for questão de índole, numa família de classe média também pode ter criminoso. É índole ou são as duas coisas.”

FARDA

O universo de ribeirinhos e indígenas sempre foi de tensão por espaço. Indigenistas procuram apaziguar as relações e evitar o avanço de inimigos. “Esse menino (Pelado) era trabalhador, sempre sorrindo nos momentos de descanso. Não me despertou atenção maior”, disse Sydney.

Na expedição, Pelado e colegas mateiros ganharam farda, tênis Kichute e chapéu. A rotina era acordar antes do sol, tomar um rápido café, passar o dia em caminhada, verificar vestígios de isolados e criminosos. O grupo construiu duas canoas para descer o Rio Jutaí.

Ao longo da viagem, ribeirinhos contavam histórias de violência. Pelado relatou que, dias antes da expedição, ele e parentes tiveram um barco roubado. A família teria pago policiais para “acabar” com os bandidos. Num acampamento, Pelado sonhou com “flecheiros” levando facões e machados. Seus gritos acordaram o grupo. A história da expedição foi relatada no livro Homens Invisíveis, que publiquei em 2007, pela Record.

BUSCAS

No dia 15 de junho, a PF organizou entrevista em Manaus para anunciar ter desvendado o crime. A busca pelos corpos foi feita, na verdade, por uma equipe de marubos, kanamaris e matises e pelo indigenista Orlando Possuelo, filho de Sydney e colega de Bruno.

Em 2002, Orlando tinha 17 anos quando participou da expedição do pai. Nos últimos anos, ouvia histórias de Pelado agora dono de um barco de pesca de 14 metros de comprimento que invadia a área indígena. Em 2017, Pelado ameaçou Bruno de morte. E teve o nome fichado por tráfico de munições. Com o governo Jair Bolsonaro, a partir de 2019, invasores intensificaram as ações no Javari.

A equipe de Orlando e dos indigenistas ouviu, ainda no dia das mortes, um pescador relatar ter visto “seu Bruno” passar numa “voadeira”, como chamam lanchas de alumínio, motor 40, no Itaquaí, e o “60” indo atrás, com dois “caras”. O barco de motor 60 era pilotado por Pelado.

Na comunidade de São Rafael, o pescador pegou uma cartucheira e uma espingarda: “Bora, bora, vamos pegar esse cara”, disse, segundo relatos. Entrou na embarcação Jeferson da Silva Lima, um homem que não tinha a tez exposta ao sol dos ribeirinhos. Os indígenas passaram a trabalhar com hipótese de crime de mando.

A diferença dos motores dos barcos permitiu que Pelado se aproximasse da voadeira. Com duas pessoas, o barco de Bruno fazia 45 km/h, dez a menos que o de Pelado. “Isso é muita coisa na Amazônia”, disse Orlando. A perseguição foi facilitada porque o barulho do motor não permitiu a Bruno perceber a aproximação.

A cerca de 15 metros, Bruno, que estava na proa, levou um tiro no abdômen – a perícia registrou outro no tórax e um na cabeça. Ele perdeu a direção e disparou uma arma a esmo. A voadeira entrou na vegetação da margem direita do Itaquaí, quebrou galhos, a hélice se enroscou no mato. Em seguida, houve mais disparos. Dom morreu com um projétil também no abdômen. A sequência foi descrita pelos indígenas da equipe de busca a partir de profunda análise das alterações do mato e do solo.

Orlando e os indígenas foram a São Gabriel, onde vivia Pelado. Jeferson entrou na conversa: “ninguém conhece Pelado aqui”. Um policial militar que acompanhava o grupo comentou: “esse Jeferson não é ribeirinho, é branco demais, tem tatuagem de cadeia”. “Se ele não era pescador local, nunca teve prejuízo com ações do Bruno. Por que entraria nessa?”, questionou Orlando.

Preso pela Polícia Militar, Pelado disse que houve um “embate” entre Jeferson e Bruno antes dos tiros. Indígenas contestam. Pelado foi com a polícia num igarapé, onde deixara os corpos. Mas foi um indígena que chamou a atenção para uma árvore derrubada. Debaixo da galharia o chão estava queimado. Os ribeirinhos tinham posto fogo nos corpos e galões, mas não conseguiram destruí-los.

Esquartejaram e enterraram. “O que você fez?”, disse baixinho Orlando a Pelado, quando os corpos foram encontrados. “Pois é, agora tenho que pagar”, respondeu. Orlando afirmou que Bruno tinha por marcas coragem, confiança e lealdade. E paixão pelos indígenas. “No campo, era parceiro e firme nas suas posições”, lembrou o indigenista. “Quem está com você na mata está com tudo. Ou não está.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.