Integrantes das polícias estaduais estão fora do gabinete de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e entidades de destaque no setor de segurança pública se limitam ao trabalho de assessoramento do grupo. A equipe responsável pela área tem o predomínio de juristas do staff de Lula e de profissionais ligados ao processo penal, estratégia que causa incômodo em um segmento que se fortaleceu no governo do presidente Jair Bolsonaro.

Coordenador do grupo de Justiça e Segurança Pública, o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), futuro ministro, deu a relatoria de temas como desarmamento, crime organizado e Fundo Nacional de Segurança Pública a colegas do Direito.

Pesquisadores universitários e personagens do entorno de Lula compõem a equipe. Na lista estão Cristiano Zanin, advogado pessoal do presidente eleito; Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas; Paulo Teixeira, deputado federal (PT-SP) e secretário-geral do PT; Pierpaolo Bottini, ex-secretário da Reforma do Judiciário no governo Lula, e Wadih Damous (PT-RJ), ex-deputado e ex-presidente da OAB-RJ.

O único policial escalado para apresentar diagnósticos e propostas é o delegado da Polícia Federal Andrei Augusto Passos Rodrigues. Da cota do presidente eleito, Rodrigues chefiou a segurança de Lula na campanha eleitoral. Seu protagonismo chama a atenção pelas indicações de nomes para equipes debruçadas sobre temas que não estão sob sua responsabilidade.

Além de provável diretor-geral da PF, o delegado deve influenciar as definições na Polícia Rodoviária Federal, na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e em secretarias do futuro ministério, de acordo com integrantes da transição. Até mesmo nesse gabinete, porém, há desconfiança sobre a disposição do grupo em não entregar “mais do mesmo” para fazer diferença na ponta.

Estudos indicam que a falta de segurança pública, em especial a violência nas cidades, foi um dos temas que ajudaram a fortalecer a direita no País, nos últimos anos. Agora, a escassez orçamentária para 2023 e o impacto da pandemia de Covid-19 na queda de homicídios já estão sendo considerados internamente como argumento para um possível crescimento da criminalidade no próximo ano.

Disputa

O conflito em curso opõe especialistas nos campos jurídico e de segurança. É também materializado na disputa pela separação ou não do Ministério da Justiça e da Segurança Pública.

Ex-governador do Maranhão e ex-juiz federal, Flávio Dino tem dito que a decisão caberá a Lula, mas trabalha para que a pasta permaneça unificada, com uma estrutura mais robusta. Ao definir os relatores do grupo na equipe de transição, Dino acabou afastando correntes favoráveis à divisão do ministério, que também é uma demanda das polícias estaduais.

O alijamento de representantes das forças estaduais de postos importantes do grupo provoca queixas na corporação. “As polícias estaduais não podem ser vistas como meras executoras de ideias construídas por pessoas que não conhecem a realidade da violência nos Estados e municípios”, disse o coronel Euller Chaves, ex-presidente do Conselho Nacional de Comandantes-Gerais da PM, ao abordar a insatisfação da categoria. “Deixar as polícias de fora do debate sobre segurança pública é amador e nada republicano”, completou Chaves, que deixou o comando da polícia da Paraíba em março, após 11 anos, e ainda mantém contato com os demais coronéis.

Para militares estaduais, o futuro governo cometeu um erro técnico e outro simbólico ao ignorá-los. Eles reclamam, por exemplo, de não serem vistos como parte da solução, mas, sim, como “parte do problema”, embora já tenham indicado pautas em comum. O argumento de que é impossível construir uma boa política de segurança pública sem chamar os servidores da ponta é endossado por observadores que contribuem com a equipe de Lula.

Militares também entendem como erro simbólico o fato de o presidente eleito ter perdido a oportunidade de reconhecer o trabalho feito em defesa da subordinação dos policiais aos governadores. Em dada altura da campanha, houve receio de ruptura constitucional a partir das polícias, mas comandantes e instituições de controle conseguiram dissipar a tensão. O foco das crises causadas pelo aparelhamento ideológico foi nas polícias federais, sobretudo na rodoviária.

Na avaliação do coronel Elias Miler, diretor da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme), essa distância tem explicação histórica, além do interesse em não criar um Ministério da Segurança Pública.

“A esquerda sempre olhou para aparelho policial como aparelho repressor do Estado. Espero que, depois desse período, eles tenham aprendido a lição de trabalhar com todas as áreas, a serviço da sociedade”, afirmou Miler.

Ao receber recentemente comandantes-gerais para uma reunião com a equipe de transição, em Brasília, Dino ouviu deles preocupações das quais compartilha, como os efeitos da política armamentista do atual governo e o descontrole sobre os Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs).

Segundo relatos dos presentes, os comandantes reiteraram os compromissos constitucionais e a disposição de colaborar. A reunião foi muito positiva, de acordo com policiais sentados à mesa. Dino também avaliou que o encontro serviu para a cúpula petista sair de uma relação “quase zero” com os comandos.

A maior aproximação com os policiais, no entanto, esbarra na maneira como o primeiro escalão do governo Lula deve ser desenhado. Uma ala do gabinete do presidente eleito entende que a recriação do Ministério da Segurança Pública seria um símbolo importante de compromisso com resultados na área.

O incômodo com a falta de PMs na transição vai além do corporativismo. Para o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, a equipe de Lula errou. “A transição acabou reforçando uma grande reclamação das polícias. Teria sido menos tenso e mais simbólico de que segurança pública é importante para o novo governo”, afirmou Lima, ao destacar por que PMs deveriam fazer parte do grupo. “Além disso, ajudaria a desfazer esse certo mal-estar que Bolsonaro fortaleceu, dizendo que Lula não pensa na polícia.”

Projeto

Distantes da equipe de transição, deputados ligados às polícias insistem no cumprimento de um acordo com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Querem votar, ainda neste ano, a Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares e a Lei Orgânica das Polícias Civis.

O texto mais polêmico é o das PMs. Com urgência aprovada desde dezembro do ano passado, o projeto vem sendo adiado por pressão dos governadores. A proposta original previa a redução do poder dos chefes dos Executivos estaduais sobre as tropas e a obrigatoriedade da escolha de comandantes-gerais a partir de uma lista tríplice. Estabelecia, ainda, mandatos para comandantes e criação da figura de um general para as polícias.

Os pontos mais críticos foram retirados da versão mais nova do texto, mas há projetos paralelos em discussão, que podem restaurá-los. Além disso, permanecem na proposta dispositivos de uma lei de 1969, como o que permite a convocação das tropas estaduais pelas Forças Armadas em situações específicas.

O prazo para o projeto ir à votação deve ser negociado em reunião do Colégio de Líderes da Câmara, nesta semana. “Se não passar agora, é mera discriminação”, comentou o coronel Miler.