25/09/2020 - 13:28
Em fevereiro de 2019, em viagem aos Emirados Árabes Unidos, o papa Francisco assinou conjuntamente com o grande imã de Al Aazhar, Ahmad Al-Tayyeb, uma histórica declaração de fraternidade, pedindo paz entre nações, religiões e raças. Um ano depois, com o mundo enfrentando a pandemia da covid-19, o sumo pontífice viveu uma reclusão inédita e, portanto, teve tempo para observar os rumos do mundo e refletir. É o resultado disto que se espera quanto ao conteúdo da terceira encíclica de Francisco, Fratelli Tutti, que deve ser publicada no início de outubro.
Como só ia acontecer em termos de Vaticano, tudo é carregado de simbolismo. A carta será divulgada no dia de São Francisco de Assis (1182-1226), de quem o cardeal argentino Jorge Bergoglio emprestou o nome quando se tornou papa. Fratelli Tutti, ou “todos irmãos”, é trecho de citação atribuída ao santo. Francisco, o papa, viajará até Assis no próximo dia 3, onde deve celebrar uma missa – com acesso restrito, devido à pandemia – e assinar a carta próximo ao túmulo de São Francisco. As expectativas, portanto, residem em um documento carregado da espiritualidade e do carisma franciscanos: fraternidade humana, tolerância entre todos, respeito à natureza.
Com o planeta aturdido pelo coronavírus, contudo, este contexto deve estar presente no documento, apostam especialistas ouvidos pelo Estadão. “Em várias ocasiões, o papa Francisco tentou delinear como o mundo deve se repensar depois da pandemia e uma chave de leitura [da nova encíclica] será a de um mundo mais fraterno”, diz o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN.
“O papa escreveu uma encíclica, o que não o fazia desde 2015. Num mundo que está em hiato, esta é a melhor forma de fazer ouvir a sua voz”, acrescenta Gagliarducci. O vaticanista acredita que a essência do texto assinado com o grande imã de Al Azhar deve estar na encíclica. E que o papa incluirá expressões recorrentes de seus discursos sobre o mundo pós-pandêmico, como a gravidade do “vírus da desigualdade” e a necessidade da “globalização da solidariedade”. “E haverá referências franciscanas, como inspiração”, acredita ele. “São Francisco é considerado o santo da fraternidade, mas também do cuidado com a criação, assim é inspiração nas questões econômicas. Tudo isso estará no texto do papa.”
“Ele vai abordar a solidariedade tão urgente no mundo de hoje, pós-pandêmico”, diz frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos do Brasil. “O modo como nós, franciscanos, entendemos a ecologia é muito forte no papa Francisco. Mas a fraternidade também é algo central na espiritualidade franciscana. O papa caminha na esteira de São Francisco, inspirado por São Francisco.”
Importância
Na hierarquia dos documentos católicos, a encíclica é a mais importante. Dirigida aos bispos do mundo todo – e, por conseguinte, aos fiéis de todas as dioceses – ela traz o chamado magistério de um papa, ou seja, os pontos basilares de sua doutrina. “Diferente de uma exortação apostólica, de uma carta pastoral, de um pronunciamento, de uma homilia ou de um tuíte, a encíclica, mesmo que não traga nada de novo sobre o tema, tem o peso de se tornar ensinamento oficial da Igreja”, esclarece o vaticanista Filipe Domingues. “Trata-se de um documento que tem uma base teológica, é mais sólido e tem peso histórico.”
Domingues acredita que o documento traga muitas das reflexões feitas por Francisco durante este ano de covid-19. “Seria muito estranho ele falar da fraternidade humana e não falar da pandemia no momento atual”, argumenta. “O tema (fraternidade humana) tem sido muito falado pelo papa, com essas palavras, e deve ter ganhado nova nuance com a pandemia.”
Assim, é de se esperar a inclusão de ideias como a dita por Francisco naquela histórica celebração em que ele rezou solitário na Praça São Pedro, em 28 de março, sob chuva. “Ele disse que ‘estamos todos no mesmo barco’, ‘Jesus é quem nos guia nessa tempestade’, ‘temos de nos unir para tratar desses problemas que são problemas da humanidade'”, recorda Domingues.
“Na Laudato Si (encíclica anterior, publicada em 2015), ele já fala sobre o meio ambiente. Agora nós entramos em uma era de negacionismo de alguns problemas globais que estão aí. Economia, meio ambiente e, agora, saúde também se tornou problema global. Acredito que vai ser nessa linha: só vamos conseguir resolver (os problemas) unindo forças”, completa o vaticanista.
Ele também acredita que Francisco defenda a necessidade de um cessar fogo global. “Ele tem apontado para isso, que não faz sentido a gente continuar produzindo arma enquanto as pessoas precisam de vacina, não faz sentido a gente continuar dedicando recursos públicos para resgatar empresas que não visam ao bem comum, empresas que vão produzir armas, combustíveis fósseis, carros, enfim, setores da economia que não vão nos ajudar a sair dessa crise melhores”, pontua. “Francisco acredita que, para sairmos melhores, precisamos nos unir e dedicar nossas forças aos setores certos.”
Por fim, Domingues também vislumbra que Francisco insista num ponto já abordado publicamente – como na celebração de Páscoa: que os países ricos cancelem as dívidas dos países pobres. De acordo com ele, há uma ideia de interconexão: “se não forem ajudados os países pobres saírem dessa crise, que não é só econômica, mas também de saúde, o mundo todo vai continuar em crise”. Em agosto, Francisco advertiu que os governos precisam “redesenhar suas economias”, colocando o pobre no centro das políticas públicas.
Documento pode embasar parte final do pontificado
O isolamento social de 2020 não foi fácil para ninguém. Mas para o historiador italiano Alberto Melloni, a pandemia deve marcar o “começo do fim” do pontificado de Francisco. A frase é controversa. Mas o que vaticanistas concordam, contudo, é que o período solitário dentre os muros do Vaticano realmente mexeram com o papa conhecido por gostar de estar rodeado de pessoas.
“Não podemos saber se esta é a fase final do pontificado de Francisco. Mas, certamente, estamos em uma nova fase, oriunda de uma circunstância: a pandemia que parou tudo, colocou o mundo em espera e portanto, também o pontificado”, define o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN.
“A pandemia obrigou uma ‘parada’, foi um baque no pontificado de Francisco, que vinha num ritmo intenso até o Sínodo da Amazônia [realizado em outubro do ano passado]. Ele tinha viagens previstas para este ano e teve de suspender muita coisa”, comenta o vaticanista Filipe Domingues. “Era de se esperar que no meio disso tudo ele dedicasse um tempo para escrever [a nova encíclica].”
Domingues prefere cautela sobre acreditar que seja a reta final do papado de Francisco. “Historicamente, é verdade que muitos pontificados terminam depois de um susto. Que fazem com que o dinamismo (do sumo pontífice) diminua, e haja uma decadência. Em geral, são homens idosos”, analisa. “Alguns historiadores estão dizendo que a pandemia é o baque que Francisco está sofrendo. Ele é social, ativo, sai, quer encontrar as pessoas, e foi obrigado a ficar no escritório, preso no Vaticano, sozinho, isolado do povo e das pessoas que o informam sobre o que está ocorrendo do mundo – não tem mais o trânsito de bispos, de pessoas que ele conhece.”
Segundo tal ponto de vista, a gestão de Francisco entrará em um declínio. “Eu não acredito nisso. Ainda não acho que é o golpe final dele. Se ele sobreviver à pandemia, já que todos nós estamos sujeitos a não sobreviver. Se ele passar, eu acho que ainda tem muita coisa para oferecer”, completa o vaticanista.
Para o Domingues, a nova encíclica pode novamente pautar sua voz pelo mundo. E, assim que condições tornarem a ser seguras, ele deve voltar a viajar pelo mundo. “O papa Francisco fez de suas viagens uma importante chave de leitura e um forte meio diplomático, e a ausência de viagens, essa mudança, de fato mudou também os planos do papa”, expica Gagliarducci.
Domingues ainda lembra das eleições nos Estados Unidos. “Se o (candidato democrata Joe) Biden for eleito, Francisco volta para a mesa das relações globais. Com a saída do (também democrata Barack) Obama, o (republicano Donald) Trump não deu abertura, ele não se dá bem com o papa, ele fechou os ouvidos. O Trump não ouve o papel de mediador do papa”, afirma.
O vaticanista vê um papa que pode sair fortalecido no cenário pós-pandemia. “Ele está produzindo, vai publicar a encíclica, está mandando respiradores para diversos países, enviou o secretário de estado para o Líbano para acompanhar a crise de lá. Não está dormindo em serviço”, ressalta. “Está trabalhando, só que de outro jeito. E está toda semana falando sobre a pandemia.”
Para o frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos do Brasil, é “claro que o pontificado do papa já não está nos primeiros anos, está num momento maduro”. “Mas dizer que marca o final, isso é especulação”, diz.
“Claro, o papa não é muito jovem (completará 84 anos em dezembro), mas só Deus sabe se esta é a fase final. É uma nova fase, e prevejo que também será caracterizada por fortes mudanças na estrutura de governo da Igreja, mesmo com novos governantes”, pontua Gagliarducci.