01/10/2020 - 12:01
O impasse em torno do Renda Cidadã, o programa pensado para substituir o Bolsa Família, aumentou com o recuo do governo da proposta de usar parte do dinheiro reservado para pagar precatórios (dívidas que o governo precisa pagar depois de determinação da Justiça) para financiar o novo benefício. A outra alternativa – o uso de recursos do Fundeb (fundo de educação básica) – também deve cair, diante da repercussão negativa no Congresso, que votou recentemente um reforço de recursos do governo federal para o fundo.
As propostas não duraram nem três dias e fizeram o governo voltar a rediscutir novas medidas, sinalizando a dificuldade em avançar na definição do programa. Desde junho, o governo intensificou a elaboração da reformulação do Bolsa Família como alternativa para o fim do auxílio emergencial, concedido a trabalhadores informais e desempregados para atenuar os efeitos da pandemia na renda das famílias.
Depois de o presidente Jair Bolsonaro rejeitar as críticas ao Renda Cidadã e pedir propostas, o Estadão ouviu economistas e especialistas para apresentar suas propostas. Nesta segunda reportagem sobre o tema, uma preocupação entre os entrevistados foi com o foco muito concentrado na parte fiscal e pouca atenção ao desenho do próprio programa – que ainda não foi apresentado e se mantém uma incógnita. Não se sabe, por exemplo, o valor médio do benefício, a abrangência do programa e as contrapartidas que serão pedidas. A urgência é porque em dezembro o auxílio acaba, mas os efeitos da crise ainda continuarão em 2021.
Especialistas respondem:
José Márcio Camargo, economista da Genial Investimentos
“O governo propôs financiar o programa Renda Cidadã, com recursos derivados do pagamento de precatórios e recursos direcionados para o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Se o dinheiro do Fundeb for utilizado para viabilizar o acesso a creches das crianças de famílias beneficiadas pelo programa, é uma excelente ideia.
A utilização de precatórios é mais problemática. Precatórios são dívidas do Estado já transitadas em julgado. Financiar um programa de transferência de renda com esses recursos, seria financiar um gasto corrente com mais dívida, o que contraria o princípio do teto de gastos e penaliza os credores. Se o programa for permanentemente financiado dessa forma, o volume da dívida com precatórios vai aumentar indefinidamente. O que é insustentável.
Manter o teto é fundamental. Viabilizar uma fonte de renda quando o auxílio emergencial acabar, também. Porém, usar um atalho para driblar a regra do teto só vai gerar mais risco fiscal, inflação e desemprego. É preciso cortar gastos.”
Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica
“Não há razão para que a discussão sobre a revisão das regras fiscais seja interditada enquanto convivemos com níveis alarmantes de pobreza e concentração de renda. A reforma das transferências de renda deve ser o ponto de partida dessa revisão, que deve incluir correções tributárias no sentido de maior progressividade que permita o financiamento não só da renda de cidadania, mas, também, de serviços públicos em geral.
Um bom caminho é a revisão de benefícios tributários e deduções do Imposto de Renda de Pessoa Física e Jurídica. Ganha força a ideia de benefícios universais como a Renda Básica.
Temos de nos valer do que já existe para chegar lá, como o Bolsa Família, sem que isso signifique aumentar o risco de vulnerabilidade de quem é atendido por políticas públicas como abono salarial (benefício de até um salário mínimo pago a quem ganha até dois pisos) e o seguro-desemprego. As propostas do governo até aqui apontaram para uso de recursos voltados à garantia de outros direitos, como saúde, educação e trabalho. É preciso combinar essa discussão com a da reforma tributária para garantir equidade.”
Márcio Holland, professor da FGV/EESP
“São vários programas de transferências de renda para família pobres, mas o hiato de cobertura ainda é elevado. Uma solução inclusiva não passa por apenas agrupar as políticas atuais. É preciso ampliar as transferências de renda para os mais pobres, aproveitando a oportunidade para promover a cidadania fiscal, ampliação da base fiscal, e inclusão financeira. Fala-se muito em realizar uma reforma tributária que aumente a eficiência econômica. Mas é preciso colocar políticas de equidade tributária em pé de igualdade. Nenhuma reforma econômica valerá a pena se não endereçar esse problema.
Recursos para tal devem vir de ampliação da tributação dos mais ricos, redutor nas deduções de declaração do IRPF. Também é preciso aumentar, de modo relevante, a tributação sobre o patrimônio, bens e doações. Caso esses recursos ainda assim não sejam suficientes, pode-se criar um tributo na linha da CPFM, de alíquota bastante baixa e ajustável.
Proponho que se crie mecanismos de declaração do IR cidadã com transferências dos dados do Cadastro Único para as bases da RFB e, com isso, permita identificar, por CPF, o volume exato de transferência de renda do Estado para as famílias carentes.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.