15/09/2020 - 15:13
O ano de 2020 já é um marco na história da sociedade moderna. O isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19, mudou o hábito das pessoas, e como consequência, alterou também o modo de operação de empresas, indústrias e serviços. Para alguns setores o impacto econômico foi determinante para o fechamento de diversas operações. Para outros, foi um gatilho para a aceleração no processo de modernização já em curso. Foi o caso do setor de logística como um todo e, em especial, para aquele voltado a atender as demandas do agronegócio. “O Brasil sairá da pandemia consolidado como o grande abastecedor global de commodities agrícolas responsável pela segurança alimentar de muitos povos pelo mundo”, afirmou Jairo Cordeiro, secretário de Fiscalização de Infraestrutura Portuária e Ferroviária do Tribunal de Contas da União (TCU). Para manter a competitividade no mercado global, no entanto, é preciso aproveitar a oportunidade aberta com a crise sanitária e preparar o setor para novos desafios. Dentre os mais urgentes, a digitalização e adesburocratização. Solucionar antigos gargalos, continua na agenda. “O período pós-Covid mostra-se como um período que priorizará a saúde, a sanidade, e a sustentabilidade. Isso abre ao Brasil e ao mundo um novo paradigma de desenvolvimento”, afirmou Marcelo Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).
Um dos impactos que já se sente de março para agosto é um maior apetite para o investimento. O Ministério de Infraestrutura anunciou que projetos em planejamento ganharam mais força após o início da pandemia, em uma estratégia para minimizar riscos de colapsos. Pelas metas apresentadas, serão R$ 30 bilhões em investimentos públicos, R$ 250 bilhões em concessões federais nos próximos dois anos, além de R$ 40 bilhões em ferrovias e R$ 1,9 bilhão em melhoria de acesso rodoviário ao porto de Santos (SP). Com o montante, a expectativa é desestatizar os portos para melhorar o embarque das mercadorias, dobrar a participação das ferrovias na matriz e reduzir o frete. “Em dois anos vamos realizar 24 leilões de arrendamento portuário, assinar 54 contratos de adesão a terminais privados, aumentar em 40% nossa frota marítima e preparar o país para um boom ferroviário”, afirmou o ministro Tarcísio Gomes.
Caso os investimentos se concretizem, há uma esperança na solução de um dos mais antigos gargalos do setor. “Atualmente, a distribuição entre os modais é desigual e pouco eficiente, o que interfere nos custos de produção e afeta as oportunidades do País no ambiente externo”, afirmou Cláudio Loureiro, diretor-executivo do Centro de Navegação Transatlântica (Centronave). Atualmente o modal ferroviário participa com 60% da matriz, o ferroviário com 23,3%, o aquaviário com 13,2% e o dutoviário com 3,4%. Pesa sobre o desequilíbrio ainda, a questão da conservação das vias. Somente 12,4% do total de 1,72 milhão de quilômetros de rodovias estão pavimentados e 57% das estradas estão em condições ruins ou péssimas. Já dos 30,6 mil quilômetros da malha ferroviária, apenas 10 mil quilômetros são explorados e ainda que o Brasil tenha 137 portos e terminais, só 45 têm conexão internacional e com graves deficiências. Problemas que afetam centros de produção cruciais para a expansão do agronegócio brasileiro. “Nosso principal meio de escoamento são as rodovias, mas motoristas e produtores sofrem problemas como dificuldade de trafegabilidade, falta de sinalização e asfalto precário. Sem a estadualização da estrada, não há perspectiva de melhora”, disse Johnathan Ferreira, membro da associação dos produtores rurais do Vale do Iriri (MT) que estima em R$ 2 bilhões os prejuízos obtidos pela região no ano passado devido às condições das vias.
BUROCRACIA Outro ponto crucial que ficou ainda mais evidente com as regras do distanciamento físico é a necessidade de desburocratização do setor. Em recente auditoria, o TCU constatou que o transportador precisa preencher diversos formulários e sistemas, além de imprimir vários documentos, mesmo os eletrônicos, regras que geram um emaranhado de papel a ser guardado por cinco anos. Burocracia causada, segundo a instituição, pela falta de articulação entre diversos ministérios — Economia, Agricultura e Infraestrutura — e pela ausência de um órgão responsável pela integração dos modais. Mesmo o transportador classificado como multimodal precisa arcar com todas as papeladas exigidas em cada um dos modais. “Não tem benefício, é só propaganda. O foco tem de ser na carga e não no modal”, afirma Cordeiro, secretário do TCU. O relatório com os pareceres da auditoria entregue a autoridades públicas no primeiro semestre começam a surtir efeito. Em agosto, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) anunciou que a emissão do Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC) passou a ser 100% digital. Além disso, o Congresso Nacional aprovou uma minirreforma para desburocratizar as atividades dos portos públicos. Entre as ações, o documento prevê que o processo de licitação para arrendamento portuário possa ser dispensado quando ficar comprovado que apenas uma empresa quer explorar a área.
Não é só o governo que está nesta batalha. Para reduzir a quantidade de papel, algumas empresas privadas estão investindo em tecnologia. Na Sotran, companhia com mais de 35 anos dedicados à logística, o processo de evolução de uma transportadora tradicional para uma plataforma de tecnologia foi intensificado. “Logo no início da pandemia, percebemos que o motorista queria se afastar do ecossistema de sempre em que ficava nos postos de gasolina apertando a mão de mais de 50 representantes de transportadores até fechar um negócio”, disse Charlie Conner, CEO da empresa. Em sua nova estratégia iniciada entre 2018 e 2019, a companhia disponibiliza um sistema que permite aos motoristas selecionar e reservar cargas on-line e um modelo de pagamento digital, criado com a intenção de acabar com o uso das cartas-frete e cheques. Ambas as ações servem ao propósito de reduzir o contato físico entre os elos da cadeia. Até o momento, a Sotran acumula cerca de 200 mil motoristas e 900 embarcadores de grãos, açúcar e fertilizantes registrados na plataforma e espera movimentar entre 15 milhões e 16 milhões de toneladas neste ano.
Com a aceleração do processo de mudança de mentalidade do motorista que passou a enxergar na tecnologia um aliado poderoso para manutenção de sua segurança e aumento da produtividade, o setor que até pouco tempo era dominado por corporações gigantes e por milhares de micro transportadoras começa a atrair a atenção de startups. Uma delas é a Trucker do Agro, uma espécie de uber do setor que venceu o Desafio Covid-19 lançado pela AgtechGarage, Bayer e Sicredi para auxiliar produtores a aumentarem a produtividade com baixos custos. “Com a pandemia, muitos dirigentes do campo perceberam que a logística era terreno fértil para transações informais com dinheiro correndo por fora”, afirmou Durval Carneiro, fundador e CEO da empresa. Para resolver este problema, Durval e mais um sócio criaram uma plataforma em que o produtor, trading ou cooperativa registra gratuitamente a carga que quer transportar, os dados de origem e destino, e o valor da nota fiscal. As informações chegam a uma base de 200 transportadoras que devolvem o preço. O contratante escolhe a que melhor lhe convier, e passa a acompanhar o trânsito da carga por um quadro digital alimentado em tempo real com todas as informações relevantes ao processo.A startup ganha por toneladas transportadas.
Não foi somente o motorista quem ganhou com os novos serviços digitais. Diversas soluções também foram criadas para atender ao produtor. Na Maersk, maior empresa de transporte naval de contêineres do mundo, novos produtos foram incorporados ao portfólio durante a pandemia. Dentre eles o Maersk Spot para dar mais transparência no processo de booking e acompanhamento on-line dos contêineres, e um serviço que oferece ao cliente a possibilidade de armazenagem de mercadorias em trânsito, no qual a Maersk segura a carga de seus clientes em hubs próprios até que haja condições mais favoráveis para sua entrega no destino. Com as medidas, a empresa conseguiu manter um bom ritmo das operações. “Não sofremos impactos da pandemia nas exportações do agronegócio brasileiro e vamos fechar o ano com crescimento da empresa previsto de 3.8%”, afirmou Gustavo Paschoa, diretor comercial da Maersk Costa Leste na América do Sul.
Pelas expectativas do setor, a expansão deve ser generalizada. De acordo com o Ministério da Agricultura, Abastecimento e Pecuária (MAPA) o Valor Bruto da Produção (VPB) do agronegócio deve crescer 8,5% neste ano em comparação com o anterior para R$ 703,8 bilhões. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), é mais otimista prevendo recorde de R$ 740,3 bilhões, 12,4% mais que em 2019. Em exportações, a estimativa da consultoria Congo, especializada em agronegócio, aponta para recorde de R$ 106,1 bilhões, com importações estimadas em US$ 12,3 bilhões, gerando um saldo também inédito de US$ 93,8 bilhões.
Se nas exportações, a Maersk manteve boas expectativas a despeito da Covid-19, em importações o fluxo de mercadorias apontava para uma redução entre 20% a 25% no segundo trimestre. O resultado foi a falta de contêineres para o embarque de mercadorias brasileiras. “Tivemos que tomar medidas extremas como embarcar um carregamento de contêineres vazios para o Brasil”, afirma Paschoa. A falta do equipamento foi agravada pelo comportamento do produtor brasileiro de usá-los como depósitos para estocagem de grãos. Ainda que o problema não seja exatamente novo, o tempo de armazenagem que antes da pandemia era de dez a 20 dias, passou para 30 dias. Para reverter o problema, a saída foi oferecer novas alternativas para estocagem ao produtor e acelerar o processo de reparos nas peças danificadas.
Mais do que um problema isolado, a questão da armazenagem é um dos grandes desafios conjunturais sofridos pelo setor de logística. Pelos dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a capacidade instalada de armazenagem é de 170 milhões de toneladas de grãos, enquanto a produção deve ultrapassar as 250 milhões de toneladas. “Como não é considerado um problema crítico para a produção, o produtor está esperando o financiamento do BNDES com taxas de 3% a 4% para a construção da infraestrutura. Mas este financiamento não vai sair. É preciso buscar outra forma de obter crédito”, disse Daniel Goulart, pesquisador do Centro de Excelência em Logística e Supply Chain da Fundação Getúlio Vargas (FGVCelog). Mesmo a melhora esperada na capacidade instalda de amarzenagem em 68 milhões de toneladas até 2029/2030 será insuficiente para atender a demanda.
MEIO AMBIENTE Ainda que os desafios da logística, dentre novos e antigos, tenham ganhado ainda mais relevância com a pandemia, a questão da sustentabilidade é um dos mais quentes na agenda mundial. “É inexorável que a preocupação com as condições sanitárias dos animais aumente e que a questão da sustentabilidade ganhe mais relevância”, afirma Guilherme Bellotti, gerente de agronegócio no Itaú BBA. Rastrear a carga, assegurar e comunicar conformidades com novos padrões de segurança alimentar e de proteção ao meio ambiente, da produção até o consumidor final, não é mais um diferencial, e sim conduta mínima para se manter no jogo. Caso o Brasil queira se manter competitivo na nova realidade, mais recursos financeiros serão necessários. “A mudança que precisa ser feita em logística requer investimentos pesados, mas o governo não tem recursos, pois tem necessidades mais urgentes”, afirma Maurício Moraes, sócio da PwC Brasil. Seja como for, além dos investimentos em si, passa pela esfera governamental criar condições para que a participação da iniciativa privada em logística se realize. Afinal quando se fala no crescimento do campo, o ganho é também para a economia do País.