O ano de 2009 foi um marco para a pecuária nacional, época em que o setor ganhou destaque na imprensa mundial – diga-se para o mal – após a apresentação do relatório “A farra do boi na Amazônia”, produzido pelo Greenpeace Brasil. Na época, a ONG, de origem canadense, colocou 80% de todo o desflorestamento da Amazônia brasileira na conta da pecuária. Eram exatos dois milhões de hectares por ano, indicando uma produção de carne “contaminada” pela destruição da natureza. Ao publicar outro estudo, no final do ano passado, a ONG deu mais uma investida sobre a produção de bovinos, setor que ocupa uma área total de 170 milhões de hectares para acomodar um rebanho de 212 milhões de animais. Chamado “Carne ao molho madeira”, nele o Greenpeace avalia o comprometimento do comércio varejista com o meio ambiente. Mas a distância de seis anos entre os dois estudos mostra que a entidade mudou sua visão sobre o setor. “A pecuária deixou de ser percebida como a vilã do processo de desmatamento”, afirma Adriana Charoux, responsável pelos assuntos de pecuária na campanha Amazônia do Greenpeace. “Outros fatores importantes, como a própria comercialização da madeira, são ainda mais preocupantes, embora os pastos para a pecuária de corte ocupem 60% da área desmatada.”

No mês passado, para mostrar que o boi pode conviver com a preservação ambiental, a rede varejista americana Walmart, com 485 lojas no Brasil, apresentou os dados referentes ao monitoramento das áreas de pecuária, das quais provém a carne vendida em suas gôndolas. “Desde 2010, investimos mais de R$ 1 milhão em um sistema próprio de monitoramento de compr de carne”, afirma Luiz Herrisson, diretor de Sustentabilidade da rede. “Hoje, conseguimos gerenciar todos os pedidos de compra aos frigoríficos.” A rede, que fatura R$ 29,6 bilhões por ano no País, agora sabe quais são as 75 mil fazendas que criam gado para ela e o que ocorre em 35 unidades frigoríficas que abatem os animais.


“Desde 2010, já investimos mais de R$ 1 milhão em um sistema próprio de monitoramento de compra de carne” Luiz Herrisson,
diretor de Sustentabilidade do grupo Walmart

Além disso, neste mês, após três anos de planejamento, o Walmart está iniciando as vendas de uma marca de carne exclusiva para animais criados na Amazônia. Trata-se da “Rebanho Xingu”, numa referência ao local de cria do gado, o município de São Félix do Xingu (PA), onde está um rebanho de 2,3 milhões de animais, o maior do País. O projeto envolve 16 fazendas, em parceria com a ONG The Nature Conservancy (TNC), que monitora a produção, e com o grupo Marfrig Global Foods, que abate os animais. “O projeto era criar uma marca diferenciada para essa carne”, diz Herrisson. “Queremos mostrar em todas as operações do Walmart no mundo que a carne bovina comprada no Brasil não contribui com o desmatamento do bioma Amazônia, em sua origem.” O Walmart é a primeira rede varejista a lançar uma marca de carne com a bandeira de preservação do bioma Amazônia. Para o início das vendas, primeiramente em lojas do Distrito Federal, serão colocadas nas gôndolas até 70 toneladas de carne por mês, abatendo 500 bovinos. Mas, o projeto é chegar a 300 fazendas no bioma Amazônia, uma área de 410 milhões de hectares, entre florestas de várzea e seca, mais a zona de transição e uma parte do bioma Cerrado. A área equivale a 48,1% do território nacional. Já a Amazônia Legal, com 520 milhões de hectares, comporta praticamente metade do bioma Cerrado e possui cerca de 70% do rebanho bovino, 148 milhões de animais em uma área de 47,9 milhões de hectares (confira o mapa).

As companhias frigoríficas estão na base de programas de preservação de biomas, como o do Walmart, e também do Carrefour, com o Alianza dal Pastizal para o bioma Pampa (confira pág. 40); ou a marca de orgânicos Korin, para o bioma Pantanal. A JBS, da família Batista; a Minerva Foods, da família Vilela de Queiroz, e a Marfrig, controlada pelo empresário Marcos Molina, iniciaram um movimento rumo a uma pecuária mais sustentável, justamente como resposta àquela investida do Greenpeace. Isso porque os três grupos são alvo fácil para medir o que ocorre na indústria do boi: juntos, eles faturam anualmente R$ 191,5 bilhões e abatem cerca de 70% do gado no País, equivalente a 31 milhões de animais por safra. Márcio Nappo, diretor de sustentabilidade da JBS, afirma que a pecuária da Amazônia de fato vem mudando. Na JBS, do total de 70 mil fornecedores de gado, 40 mil estão na região. As fazendas desses pecuaristas ocupam 60 milhões de hectares, uma área maior do que os três Estados que compõem a região Sul do País. “Nos últimos dois anos, por exemplo, de um total de 13 mil operações de compra de gado na Amazônia Legal, 99% estavam em conformidade com o compromisso da indústria em não comprar animais de área desmatada”, diz Nappo. “Hoje, bloquear rapidamente um fornecedor que esteja em situação irregular na Justiça.”

Atualmente, o desflorestamento na Amazônia, que não pode ser colocado exclusivamente na conta da pecuária, é da ordem de 500 mil hectares por ano. Apesar de que a meta de desmatamento zero proposta por movimentos ambientalistas e por produtores engajados na preservação da floresta ainda não tenha sido alcançada, a queda abrupta no índice de abate de árvores mostra que as matas em pé – que não são poucas – podem ser muito bem protegidas pelos projetos pecuários em curso na região. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre os anos 1988 e 2015 foram desmatados 41,3 milhões de hectares. Apesar do número assustadoramente grande, essa área equivalente a apenas 8% de toda Amazônia Legal.


“Nos últimos dois anos, 99% das operações de compra de carne estavam em conformidade ambiental” Márcio Nappo,
diretor de Sustentabilidade da JBS

Para proteger a floresta, uma das ferramentas de preservação mais eficazes, e que tem funcionado como um olho sobre o boi da Amazônia, são as análises geoespaciais para monitor as fazendas de gado. Elas são realizadas diariamente pelos frigoríficos. É por meio delas que as empresas conseguem detectar se alguma propriedades fornecedora de boi está sendo desmatada ilegalmente. Além disso, são checadas também se a propriedade faz parte das listas de trabalho escravo, do Ministério do Trabalho, e do desmatamento ilegal, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Leonel Almeida, gerente de Compra de Gados da Marfrig, diz que o trabalho de inteligência do frigorífico tem contado com uma ajuda substancial da tecnologia. Ele dá como exemplo a adoção de técnicas modernas de governança corporativa, que parecem simples de serem executadas, mas que envolvem procedimentos complexos. Uma delas, por exemplo, é a chamada Request for Information (RFI, ou pedido de informação). Hoje, os dados de um boi, guardados em um banco, podem ser cruzados com outras informações a qualquer momento; ou saber a origem de um bezerro comprado por um pecuarista que somente engorda gado. “Em função desse processo, dois mil fornecedores, dos nove mil que temos cadastrados na região da Amazônia Legal, estão bloqueados”, afirma Almeida. “Esse cuidado na rastreabilidade do gado nos garantiu acesso privilegiado à rede de supermercado inglesa Tesco, para a qual somos o único fornecedor brasileiro de proteína bovina, com carne enlatada.”

O grupo Minerva também trabalha com um olho na exportação. De acordo com Taciano Custódio, gerente de Sustentabilidade e Meio Ambiente, o acompanhamento georreferenciado já cobre 92% das 2,6 mil fazendas que fornecedoras de gado do bioma Amazônia. São 730 mil animais monitorados, cuja produção é de cerca de 197 mil toneladas de carne por ano.


PIONEIRISMO:
Rebanho Xingu é a carne especial produzida pelo Marfrig, em São Félix do Xingu (PA), e comercializada pelo Walmart

“É fundamental cumprir critérios de sustentabilidade”, afirma Almeida. “No mercado interno, vão surgindo marcas, no externo, eles abrem as portas.” Na Minerva, 70% da receita de 2015 vieram das exportações, R$ 6,6 bilhões do total.