10/04/2018 - 10:00
O movimento global por um consumo sustentável chegou definitivamente à cadeia da proteína animal. Os consumidores, cada vez mais bem informados, estão dizendo não para as práticas de manejo que levem sofrimento a bovinos, suínos e aves. Essas cadeias processam globalmente 262,7 milhões de toneladas por ano, e podem enfrentar daqui para frente uma forte barreira comercial, caso se descuidem do tema. A DINHEIRO RURAL entrevista, neste mês, o zootecnista José Rodolfo Ciocca, gerente de Agropecuária Sustentável da World Animal Protection, organização não-governamental inglesa que atua em todo o mundo na defesa de qualquer tipo de animal, de cães até elefantes. Desde 2013, a entidade apresenta o relatório anual Benchmark de Negócios do Bem-estar Animal na Fazenda (BBFAW, na sigla em inglês). “O Brasil é um grande responsável na produção global de alimentos, que começa a atender uma demanda de perfil de consumidores que são a favor de uma pegada mais ética e pode elevar ainda mais a sua importância”, diz Ciocca. Leia os principais trechos da entrevista.
DINHEIRO RURAL – Há novidades na edição 2018 do relatório sobre bem-estar animal?
JOSÉ RODOLFO CIOCCA − A novidade é que estamos vendo um grande movimento de empresas comprometidas com investimentos em bem-estar animal. O estudo avaliou 110 empresas de 18 países, ligadas à cadeia de produção e ao comércio de alimentos. No primeiro relatório havia 68 empresas de 12 países. No Brasil, foram avaliadas três empresas: a BRF, a JBS e a Marfrig. Elas estão incorporando mais a política de bem-estar animal. O plano é aumentar cada vez mais o número de empresas avaliadas, especialmente na América Latina e na Ásia.
RURAL − Como as empresas comprovam que estão mudando as suas práticas?
CIOCCA − A comprovação é feita por meio das informações que as companhias divulgam em seus relatórios anuais. Apesar de não ter uma auditoria, o BBFAW desenvolveu uma metodologia bem complexa, com cruzamento de todas as informações, o que evita margem de manobra. A pontuação de uma companhia sobe, à medida que a sua atuação envolve geograficamente outras regiões do mundo. Por exemplo, o McDonald’s. Na Inglaterra, a empresa afirma não usar mais ovos de galinhas confinadas em gaiolas. Mas, no Brasil, a empresa ainda não publicou esse compromisso. Nesse sentido, ela não vai ter uma nota elevada.
RURAL − Pode-se confiar nas informações declaradas?
CIOCCA− Sim, porque essas empresas investem em fiscalizações internas. Uma auditoria feita por outras organizações comprovam que as companhias listadas no relatório estão cumprindo as metas de bem-estar animal. Essas informações acabam constando no relatório.
REVISTA RURAL − Qual foi o nível de classificação das empresas brasileiras?
CIOCCA − A BRF e a JBS foram classificadas no nível dois e a Marfrig, no nível três. O ranking que compõe o relatório parte do nível um, o melhor, ao nível seis, o pior.
RURAL − O que exatamente elas estão fazendo?
CIOCCA − A BRF se comprometeu com a criação de leitoas matrizes livres de gaiolas. Nós estamos desenvolvendo um projeto com a empresa para, aos poucos, ir adotando esse sistema em todas as regiões em que ela atua. A JBS também tem feito a mesma coisa. Então, vejo de forma explícita a evolução da agroindústria brasileira.
RURAL − Qual a repercussão desse tipo de política?
CIOCCA − No caso da BRF, quando se comprometeu com a eliminação das gaiolas na criação de suínos, ela influenciou outras agroindústrias na adoção dessa postura. A proposta da BRF é que os produtores integrados criem soltas metade de seus plantéis de leitoas até 2025. Hoje estão todas em gaiolas. Isso vai significar um salto gigantesco no bem-estar desses animais.
RURAL − Quais são as outras parcerias da World Animal Protection?
CIOCCA − Trabalhamos diretamente com instituições que consigam dar uma base científica para o bem-estar animal. Não é algo abstrato. Estamos desenvolvendo projetos com a Embrapa Suínos e Aves, de Concórdia (SC), incentivando a realização de projetos de criação mais humanitária dos animais. Essa será a demanda do consumidor daqui para frente. Há, também, parcerias com universidades, como a UFRJ, a Unesp e a UEL.
RURAL − Com poucas empresas, como o Brasil é avaliado no relatório?
CIOCCA − Apesar do número pequeno de empresas avaliadas, a pesquisa mostra que o País ocupa uma posição interessante. Isso porque o relatório leva em conta o conjunto de empresas avaliadas, que, no caso do Brasil, são três muito bem posicionadas. Ao contrário dos Estados Unidos, onde foram avaliadas cerca de 30 empresas, com notas variadas. Mas é necessário que o Brasil avance em certas questões. O País está produzindo um animal visando ao bem-estar, mas destinado apenas aos europeus. Por que isso? Na maioria das vezes, o brasileiro nem chega a consumir os produtos vindos desse tido de criação.
RURAL − É preciso inverter essa lógica?
CIOCCA − Sim, porque o brasileiro já começa a questionar o bem-estar animal do produto que consome. As empresas devem se preparar para atender a exigência do consumidor local, pois ele também quer uma proteína animal de qualidade. Isso vai refletir, inclusive, em mais pontos e melhores níveis no ranking.
RURAL − Do ponto de vista do bem-estar animal, como o Brasil pode evoluir?
CIOCCA − Claro que ainda há muito para fazer, mas o Brasil é um grande responsável na produção global de alimentos. Principalmente de proteína animal. Nesse cenário, ele começa a atender uma demanda de perfil de consumidores que são a favor de uma pegada mais ética e pode elevar ainda mais a sua importância na produção de alimentos. O País tem potencial para garantir condições mais naturais de criação, com acesso do rebanho a pasto, luz e ar livre.
RURAL − Para o bem-estar animal, qual é a cadeia produtiva mais crítica?
CIOCCA − São duas, no caso, a de suínos e a de aves. Há três aspectos que identificam seus pontos críticos. Um deles é a longa duração de sofrimento a que um animal pode ficar submetido. O outro é o confinamento extremo e a alta lotação de animais em um mesmo espaço. E não menos importante são as práticas de mutilação. Na avicultura, por exemplo, há casos em que se cortam os bicos das aves. Na suinocultura, há o corte da cauda e dos dentes dos animais. Felizmente, há alternativas para melhorar isso tudo. São medidas que podem garantir uma produção mais sustentável.
RURAL − Que alternativas são essas?
CIOCCA − São métodos simples de bem-estar animal. Se dermos mais condições ambientais aos animais, eles expressam melhor o seu potencial produtivo. Por exemplo, a garantia de fontes de alimentos mais naturais, além de luz e vento. Menos estresse, com uma redução de lotação, pode se refletir em maiores ganhos econômicos na criação.
RURAL − Há algum exemplo de criação que está seguindo esse tipo de criação?
CIOCCA − Há sim. Temos acompanhado de perto um sistema de criação de suínos no Distrito Federal que está mudando o sistema de gestação na granja. Hoje são cerca de 2,1 mil matrizes criadas em gaiolas e outras 1,7 mil soltas. Trata-se de um grupo com alto nível de tecnologia, que investiu, inclusive, num sistema de alimentação automatizada para os animais. Eles estão percebendo a melhoria dos resultados, comparando os dos sistemas. O produtor está conseguindo produzir mais com as fêmeas no sistema de gestação livre. Isso significa não só um modelo de criação ético mas também econômico.
RURAL − Esse tipo de produção não leva a preços mais altos nos supermercados?
CIOCCA − Teoricamente não. Não há uma relação direta entre o fato de o animal ter um bem-estar melhor e o aumento de preço para o consumidor. O que pode acontecer, no princípio, são as redes varejistas se aproveitarem disso e querer ganhar em cima dessa produção baseada no bem-estar.
RURAL − Essa cadeia de valor dos alimentos tem muito a amadurecer ainda?
CIOCCA − Creio que sim. Isso porque ainda é novo no País esse modelo de criação, que leva em conta todas as recomendações de bem-estar animal. Faz parte de um processo natural e que aconteceu em outros países, como na Europa. Lá também houve essa preocupação inicial de que os alimentos ficariam mais caros. Começou como um nicho de mercado, mas a tendência é a produção ganhar escala. Com isso é criada a estabilização do valor do alimento. No caso da produção de ovos de galinhas livres de gaiolas, esse custo inicial pode parecer mais alto, mas quando a produção ganha escala, o preço se normaliza. Em alguns países que produzem mais ovos de galinhas livres do que no sistema tradicional, a diferença de preço ao consumidor é muito pequena.