Quem pratica pecuária moderna sabe que o bem-estar animal na produção de carne bovina deve figurar na lista de uma fazenda como a prioridade número um no manejo do gado. Bovinos bem tratados refletem diretamente em ganhos econômicos para o pecuarista. No sentido inverso, boi maltratado significa, literalmente, carne jogada na lata do lixo. E isso não é nenhuma figura de linguagem. Estudos mostram que cerca de 60% das carcaças de bois abatidos nos frigoríficos brasileiros apresentam algum tipo de hematoma. Por conta desses  “defeitos” do produto, a média de perda de carne é de cerca de 500 gramas, por animal, no rebanho do País – isso significa virar as costas para meia peça de picanha em cada bovino abatido. E o mais grave de tudo, aos olhos do consumidor, um animal que passou por maus tratos é a prova definitiva de que a crueldade no campo é um fato e não um boato, denegrindo o trabalho do produtor rural. “Para os pecuaristas, frigoríficos e empresas que atuam no setor, não há como dar as costas a esse fato”, diz o agrônomo Fernando Sampaio, diretor executivo da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). Uma pesquisa recente, realizada pela entidade, mostrou que 40 toneladas de alcatra foram para o lixo, em seis meses, em apenas um frigorífico de Mato Grosso do Sul. O motivo? Contusões sofridas pelos animais durante o seu transporte para o frigorífico, ou provocadas pelo mau manejo na fazenda. 


Mais rigorosos:as redes americanas de supermercados, Walmart e Sam´s Club, exigem dos produtores mais transparência sobre o tratamento dado aos animais

Para o médico veterinário Paulo Loureiro, da MSD Saúde Animal, braço do laboratório americano Merck, um estudioso do tema, o bem-estar animal precisa ser visto com outros olhos. Ou seja, não bastam manejo e instalações. O bem-estar em uma propriedade rural deve ter uma pegada mais fina, porque os resultados que contam estão diretamente ligados à relação entre o ser humano e o animal.  “O importante são as pessoas, não é o curral, o aço ou o concreto”, diz Loureiro. “Os bovinos não nos temem, eles querem ser guiados por nós e não tocados.” Atualmente, Loureiro é o responsável por um programa chamado Creating Connections (em português, Criando Conexões), destinado às fazendas e grandes confinamentos de bovinos nos Estados Unidos, na Austrália, nos quais a MSD presta consultoria. No Brasil, o programa é coordenado pelo veterinário Denis Alves Antonio, um dos gerentes da MSD. A missão dessa equipe, nos últimos anos, tem sido debater incansavelmente com produtores sobre quais caminhos tomar. Para ele, na prática, o homem deve deixar de “tocar” o animal desde bezerro, para “conduzi-lo” durante toda a sua vida, o que significa trabalhar ao lado do gado.

À primeira vista, a proposta de Loureiro parece depender de um tipo de encanto, ou de mágica. Na prática, ele propõe que os manejadores do gado entrem no curral sem ter nada nas mãos, ao contrário do que acontece hoje, na maior parte das propriedades. Os responsáveis pelo manejo devem caminhar nas instalações, para que os bovinos respondam aos seus comandos. O sucesso da empreitada está em cada passo dado, na direção escolhida, na cadência do movimento e no olhar, formando um conjunto chamado de linguagem corporal. “A chave de tudo está no posicionamento do homem frente ao animal”, afirma Loureiro, um dos idealizadores do Creating Connections, juntamente com o veterinário americano Tom Noffsinger, filho de fazendeiros do Estado de Nebraska e atualmente um dos principais consultores americanos em manejo bovino. “Temos de estar com as mãos livres e nos apresentarmos de frente para o animal, como garantia de que não haverá agressão e de que estamos ali para conduzi-los”, afirma Loureiro.


Capacitação:investimento em programas de boas práticas e treinamentos de funcionários ajudam na eficiência do manejo dos rebanhos nas propriedades

Essa teoria se contrapõe a uma das ferramentas mais consagradas, atualmente, como símbolo do bem-estar animal, que é a bandeira de manejo no lugar de antigos açoites com varas e chicotes. Loureiro e Noffsinger também questionam as instalações, como os currais completamente fechados, para que o animal não olhe além de alguns centímetros no momento do manejo, e as plataformas suspensas, nas quais os peões trafegam nessas instalações, pois elas não permitem a visualização do guia pelo animal.

De acordo com os especialistas, toda a movimentação próxima dos bovinos deve ser sutil e baseada na observação e na paciência. Se o bovino levantar demais a cabeça durante uma aproximação, por exemplo, isso é um sinal de que ele não concorda e não seguirá o comando. Nesse momento é hora de recuar, colocando em prática o conceito de “pressão e alívio” para, em seguida, conseguir o movimento voluntário do animal. Loureiro e Noffsinger sustentam, também, que é importante respeitar o distanciamento exigido pelo animal, construindo uma relação de confiança no manejo. Outra recomendação é sempre caminhar em ângulos. “Os animais reagem bem quando pedimos de maneira correta”, afirma Loureiro.


Parceria: Paulo Loureiro, da MSD (à dir.) e o veterinário americano Tom Noffsinger, fazem consutorias de manejo bovino em fazendas e grandes confinamentos

Especificamente para o gado zebuíno, predominante no Brasil, as técnicas são as mesmas aplicadas ao gado de origem europeia, como o angus ou o hereford. A diferença está na maior distância mínima de aproximação tolerada pelo animal e a sua velocidade, que no caso do nelore, é mais rápida.

NA PRÁTICA Para o pecuarista Caio Penido Della Vecchia, diretor do grupo Roncador, dono de um rebanho de 60 mil animais,  criados em Mato Grosso e São Paulo, é preciso mostrar ao consumidor de carne bovina que há técnicas modernas por trás de um bife. “O que mais nos move a investir em programas de boas práticas e sustentabilidade é a percepção social”, diz Dalla Vecchia. “Ninguém se sente confortável com gritaria ou agressão.” O pecuarista afirma que as mudanças no manejo do gado nas principais regiões produtoras vêm ocorrendo rapidamente, porém, quem está distante, nos centros urbanos, não tem a mesma percepção e nem sempre é informado corretamente. Mas, com o poder de compra nas mãos, eles têm influenciado muitas ações na cadeia produtiva. 

Em junho, as redes americanas de supermercados, Walmart e Sam´s Club, fizeram um anúncio mundial exigindo dos produtores transparência sobre o tratamento dado aos animais. As empresas informaram, publicamente, que não vão tolerar qualquer tipo de crueldade. Sampaio, da Abiec, diz que os mercados importadores, principalmente o europeu, já estabeleceram regras rígidas para seus criadores e que elas são estendidas aos fornecedores de carne. “Entraves baseados no bem-estar animal não são oficializados em acordos governamentais, mas são exigências do setor privado”, afirma. “Portanto, as barreiras comerciais para essa questão já existem.” De acordo com Sampaio, já houve no passado recente uma pressão imensa sobre a indústria da carne.

O próximo passo, de acordo com Sampaio, é capacitar os pecuaristas de forma massiva no campo para que possam  avaliar mais apropriadamente o nível de bem-estar oferecido em suas propriedades. Por ter um sistema de criação baseado no pasto, o Brasil leva vantagem sobre os demais países produtores de carne, como, por exemplo, os Estados Unidos, em que o gado é todo confinado. Dos cerca de 200 milhões de bovinos, menos de cinco milhões são terminados em confinamento, no qual permanecem apenas alguns meses no sistema. “Já existe uma percepção do comprador internacional de que o padrão de bem-estar no Brasil é mais elevado quando comparados a outros países”, diz Sampaio. “O que precisamos é refinar essa percepção”. Loureiro acredita que o Brasil vai avançar ainda mais nas questões de bem-estar, ao investir em uma visão holística das práticas no campo. “O manejo começa na reprodução e passa pela desmama, recria e engorda dos animais, o que coloca o treinamento como a base de todo o processo.”