Apenas treze gramas de carne per capita em um ano. A quantidade é irrisória, mas foi isso que rendeu a histórica exportação brasileira de 17,2 mil toneladas de carne bovina à China, em 2012 – o maior volume vendido até hoje pelo País, quando dividida por uma população de 1,3 bilhão de pessoas. O negócio alcançou US$ 75 milhões, e de lá para cá, o País perdeu o acesso ao maior mercado potencial do mundo, por conta de uma suspeita da doença da vaca louca, no rebanho do Estado do Paraná. A doença, de fato, nunca existiu, mas o mal-entendido demorou para ser resolvido. Só no dia 19 do mês passado, com a visita do primeiro-ministro Li Keqiang, o Brasil voltou a sua condição de fornecedor de carne para os chineses. “Pode-se dizer que ganhamos um presente de Natal antecipado”, diz o médico veterinário Antonio Jorge Camardelli, presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). Mas esse fato representa mais do que isso. O apetite do dragão é maior: ele não quer só mais carne ou commodities tradicionais, como soja, açúcar e algodão. Quer, também, participação nos setores brasileiros de autopeças, equipamentos de transportes, energia, siderurgia, ferrovias, rodovias, aeroportos, portos, armazenamento e serviços. Para consolidar essa aliança, a China está disposta a colocar a mão no bolso. O volume de investimentos previstos ultrapassa a casa dos US$ 53,3 bilhões (cerca de R$ 160 bilhões).

A notícia não poderia ter vindo em melhor hora para o governo. Às voltas com uma séria crise econômica, acentuada pelo desgaste político da presidente da República, Dilma Rousseff, e de seu partido, o PT, bem como pela fragilização da base governista no Congresso, o Brasil se ressentiu com a queda dos investimentos. Nos quatro primeiros meses de 2015, por exemplo, foram investidos US$ 18,9 bilhões, uma redução de 36,3%, frente ao mesmo período do ano passado. “A China é o principal parceiro comercial do Brasil”, disse Dilma, ao comentar a visita do mandatário. “E com vistas a intensificar o nosso intercambio, aprovamos várias medidas importantes.” Ao todo, são 35 acordos, oito dos quais podem impactar o agronegócio como investimentos para o ampliar a capacidade produtiva e logística do País, processamento de produtos agrícolas, cooperação de mercado, incentivo a exportações, e, especialmente, cooperação em saúde e quarentena animal, “A partir desse acordo, criamos um marco jurídico necessário para a retomada das exportações de carne bovina para a China de forma sustentável”, diz Dilma.


Brinde à parceria: a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, recebe seu colega chinês, Han Chang Fu, para firmar os acordos para o agronegócio

Para os chineses, que não são de rasgar dinheiro nem de beber água fervente, o estreitamento das relações comerciais com os brasileiros, tem tudo a ver. Com uma expectativa de que sua economia continue desacelerada, com 7% de crescimento do PIB previsto para este ano, o mais baixo desde 1990, a China aposta nos investimentos no Brasil para dinamizar sua economia, garantindo mercados para seus produtos e matéria-prima para aumentar a produção interna e melhorar a renda da população. Para o economista Roberto Dumas, professor e especialista em mercado chinês do Insper, esses planos servem como uma luva para o momento de transição liderado pelo governo do presidente Xi Jinping, que está priorizando internamente os investimentos no setor de serviços, em detrimento da indústria. “Ao contrário do Brasil, a China conta com muitos recursos e pouco consumo”, diz Dumas. Segundo ele, a ideia é equalizar essa situação, com a entrada de novos produtos no país, o que beneficia, e muito, a economia brasileira, especialmente o agronegócio.

A disposição das autoridades chinesas soa como música aos ouvidos das empresas brasileiras, ávidas por conquistar posições no mercado da segunda maior economia do mundo, com um PIB anual de US$ 9,3 trilhões. É o caso da BRF, sétima maior companhia de alimentos do mundo. A companhia assinou, em 2011, uma carta preliminar de intenções com a empresa chinesa Dah Chong Hong Limited para criar uma joint venture. O plano é fazer a distribuição de produtos e o processamento de carnes em frigoríficos locais, bem como o desenvolvimento da marca Sadia na China, com a entrada nos canais de varejo e food service.

Mas a peça de resistência dos acordos firmados pelos dois governos, no mês passado, é a construção de uma  ferrovia transoceânica, ligando o Atlântico ao Pacífico. Com reservas internacionais que chegam a US$ 4,3 trilhões, a China tem cacife de sobra para bancar esse plano, estimado em US$ 10 bilhões. Saindo de Porto do Açu, no Rio de Janeiro, a ferrovia atravessará os Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Rondônia e Acre até chegar ao Porto de Ilo, no Peru. “A coisa é simples: o Brasil precisa a aumentar  sua capacidade produtiva e o único parceiro disposto a investir aqui é a China”, diz Dumas. A ministra da Agricultura, Kátia Abreu, conversou com os chineses sobre a importância da ferrovia, que permitirá um salto no escoamento da safra brasileira de grãos. “Ficamos preocupados com a viabilidade, por conta da Cordilheira dos Andes, mas eles garantiram que é possível”, diz Kátia.


“Eles têm todas as condições para aumentar ainda mais as comprasde carnedo Brasil” Roberto Rodrigues,ex-ministro da Agricultura

Enquanto a nova rota logística não sai do papel, o que há de concreto são os planos de reabertura da exportação da carne bovina, com a liberação das oito unidades frigoríficas de bovinos, barradas no final de 2012, e uma de aves. “Mas, até o fim deste mês, eles nos prometeram aumentar o número de autorizações”, diz a ministra. Ao todo, devem ser autorizadas 26 frigoríficos, que podem resultar US$ 520 milhões anuais de exportações. Segundo a ministra, tão importante quanto ter de volta o acesso a esse mercado foi passar a vender diretamente para a China. “Fazíamos isso, por intermédio de Hong Kong”, diz Kátia. “Agora, podemos negociar com o governo chinês, o que representa um salto muito grande.”


“Pode-se dizer que ganhamos um presente de Natal antecipado” Antonio Camardelli, presidente da Abiec

Se for bem sucedido nessa empreitada, o País poderá crescer numa área  que ainda deixa a desejar em termos de comércio com os chineses. As carnes, incluindo as de frangos e de suínos, são a sétima categoria no ranking das vendas do agronegócio brasileiro para a terra do primeiro-ministro Li Keqiang (leia o quadro acima). Para o ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, presidente do Conselho do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp),  há muito a ser feito para saciar o apetite do dragão, nos próximos anos. Segundo ele, só em carne bovina, os volumes poderiam chegar a 650 mil toneladas, quatro vezes mais que o total atual das exportações de todos os tipos de carnes. Esse montante seria obtido caso cada chinês consumisse apenas 500 gramas de carne, por ano, o que é considerado muito pouco pelo ex-ministro. “Eles têm todas as condições para aumentar ainda mais as compras de carne do Brasil, pois estão crescendo a miseráveis 7%”, diz, jocosamente, Rodrigues.