O empresário mineiro Gabriel Donato de Andrade, fundador do grupo Andrade Gutierrez – um dos maiores grupos das áreas de construção pesada e de telecomunicações do País, deu murro em ponta de faca durante 40 anos, desde o momento em que decidiu criar gado da raça gir leiteiro na fazenda da família, em Arcos, no interior de Minas Gerais, em 1962. Somente na última década o empresário começou a colher os frutos de sua persistência. “eu e mais meia dúzia de criadores no País”, diz Andrade, que raramente fica parado enquanto fala. Durante a reportagem de Dinheiro RURAL, o criador, que em janeiro completa 87 anos, andou pela fazenda para mostrar o gado e até se dispôs a ordenhar uma de suas vacas. “Aqui tem leite”, dizia ele. Mas nem sempre foi assim. As vacas dessa raça de gado indiano eram consideradas ruins de leite e com pouca habilidade para criar um bom bezerro. Um desastre, se comparadas com as vacas holandesas, animais com produção diária que facilmente passa dos 20 litros. Mesmo assim, Andrade não se deixou seduzir pelas holandesas. “o que diziam do gir nunca foi uma verdade absoluta”, afirma Andrade. “A raça é uma boa opção para a produção de leite em ambiente tropical, como é o caso da maior parte do Brasil.”

TESTE DE CAMPO: experiência com gado cruzado também mostra o gir mais produtivo, diz Correa.

BOA MÃE: presença do bezerro na hora da ordenha é fundamental.

VACAS TOP: o administrador Silva, com Chadanni (à esq.) e Prateada, animais de seleção e alta produção leiteira.

Hoje, o rebanho da Fazenda Calciolândia conta com 2,6 mil animais e é um dos melhores do País em genética leiteira. Por ano, são vendidas 300 fêmeas e 200 touros da raça, boa parte em leilões de gado. Também é comercializado sêmen de 15 reprodutores e encaminhados para um laticínio da região cinco mil litros de leite por dia, dos seis mil por ano, são vendidas 300 fêmeas e 200 touros, boa parte em leilões produzidos pelas vacas da fazenda. No ano passado, o faturamento foi de R$ 11,7 milhões, quase 14% a mais que em 2010. Na última década, a taxa de crescimento do negócio com animais leiteiros tem ficado sempre acima de 10% ao ano e, se comparado com o que a fazenda produzia em 2001, o salto foi espetacular, acima de 400%. “Para mim, apostar na criação de gir sempre foi óbvio demais.”

Olhando o desempenho da fazenda, não há quem não dê razão a Andrade. Mas nem sempre foi assim. o próprio pai, Donato de Andrade, o desencorajava a criar gir. “Ele dizia que raça boa era europeia, de preferência da suíça.” Com vacas cruzadas de zebu com pardo-suíço que encontrava no Brasil, Donato chegou a montar um laticínio para processar manteiga e leite em pó para o mercado do Rio de Janeiro. Em 1962, quando a fazenda foi dividida entre os herdeiros de Donato e a fábrica vendida para a Nestlé, a produção chegava a cinco mil litros de leite, mas com um rebanho enorme na fazenda. Por isso, quando se decidiu pelo gir, tinha em mente produzir leite com um gado mais produtivo que o existente na fazenda. Mas esse gir ainda era raridade.

Antes do domínio do nelore como a principal raça bovina criada no Brasil – a partir da década de 1960 –, o gir, que desembarcou no País na década de 1910, era a raça mais comum para a produção de carne e de leite. Só que não era bom. A produção diária de leite por vaca não chegava a três litros. “Muito gir era criado naquela época, largado e sem um trabalho de seleção para leite”, diz Andrade. Por isso, em vez de trocar de raça, o criador decidiu que era preciso melhorar o que havia na região. A decisão foi certeira. Em geral, projetos de pecuária que não dão certo começam pela definição de qual raça será criada, depois vem a escolha do tipo de alimentação que o gado receberá e só então o produtor vai ver se a terra tem qualidade para supor- tar a criação. Mas o correto é fazer exatamente o contrário. Primeiro é preciso analisar a terra, escolher o capim mais adequado para ser plantado ali e criar o gado adaptado às condições da fazenda. Hoje, essa teoria é a base de qualquer projeto sustentá- vel. “o gir era o gado mais comum na região, não havia motivo para pensar em outra raça”, diz Andrade.

A principal batalha do criador foi provar que o gir poderia ser um gado leiteiro que não dependia de cruzamento com outra raça para produzir leite em quantidade. Quando começou a procurar por vacas mais produtivas para comprar e iniciar seu rebanho, o gir era visto apenas como raça que aguentava o calor e o pasto de baixa qualidade, e que desse modo servia apenas para dar como herança à sua cria a rusticidade, caso fosse acasalada com o holandês ou o pardo-suíço. “Nunca concordei com essa teoria pro- pagada aos quatro cantos como verda- de”, diz Andrade. “Mesmo no cruza- mento com outra raça, o gir poderia passar mais que rusticidade aos seus descendentes.” Andrade conta que certa vez um presidente da Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) disse a ele que não se iludisse em fazer da raça um gado mais produtivo, pois seria um trabalho insano.
Andrade não deu ouvidos ao conselho. hoje, a média de produção por vaca na fazenda Calciolândia é de 4,6 mil litros de leite em 290 dias de lactação, período em que a vaca é ordenha da após o nascimento do bezerro. Em relação à década de 1970, a produção dobrou. Naquela época, ela era de 2,3 mil litros de leite em 270 dias. Com o gado melhorado, a média diária na ordenha dobrou, passando para 16 litros de leite, mas há vacas produzindo 35 litros e até 45 litros no lote das matrizes top de seleção. “O desempenho na sala de ordenha não deixa nada a dever a nenhuma outra raça”, diz Andrade. “Quando começamos, a melhor vaca da fazenda dava 20 litros de leite por dia.”

Outra característica importante para medir a precocidade de uma raça, a idade da fêmea no primeiro parto, que era de quatro anos, hoje não chega aos três anos. “Quanto mais cedo elas forem para a reprodução, mais bezerros vão nascer na fazenda”, diz. “É matemática pura.” Para Andrade, tirar leite de pedra nunca foi uma missão impossível. Numa palavra da moda, em tempos de governança corporativa, Andrade sempre foi o que os consultores de gestão e de recursos chamam de uma pessoa resiliente, palavrão que traduz a capacidade de transformar a energia negativa de um problema em uma solução criativa. o cria- dor, que é formado em engenharia civil, utilizou essa mesma tática para fundar a Construtora Andrade gutierrez, em 1948, junto com o irmão Roberto e o amigo de faculdade Flávio gutierrez, dos três o único com dinheiro na mão para começar uma empresa. Andrade conta que o pai havia comprado um trator, mas não o recebeu porque a fábrica estava ocupada em produzir artefatos que seriam usados na segunda guerra Mundial. “o trator só chegou na fazenda oito anos depois de comprado, quando não precisávamos mais dele.”

Para não deixar a máquina parada, Andrade começou a consertar estradas esburacadas, pri- meiro as da própria fazenda, depois as dos vizinhos de porteira dando origem a uma empreiteira que constrói estradas, pontes, hidroelétricas e aeroportos em mais de 40 países. No ano passado, a holding de capital privado e fechado, com projetos e negócios em setores como energia, telecomunicações, concessões, logística, defesa, óleo e gás, chegou a uma receita bruta de
R$ 16,3 bilhões e um lucro líquido de R$ 1,5 bilhão, o dobro do lucro apurado em 2010, de R$ 774 milhões. O grupo Andrade Gutierrez controla empresas como a Companhia energética de Minas gerais (Cemig), a Companhia de saneamento do Paraná (sanepar) e a oi, operadora de telefonia com mais de 67 milhões de clientes no País. No final do ano passado, a holding contava com 127 obras em execução em todo o mundo, como metrô em Portugal e Argélia. No País, entre as obras em andamento estão quatro estádios de futebol para a Copa do Mundo de 2014 (no Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e Manaus) e a polêmica hidroe- létrica de Belo Monte, no Pará.

Desde o final do ano passado, Andrade, que se afastou do dia a dia do grupo e é o único sobrevivente do trio fundador da Andrade gutierrez, passou o comando da fazenda leiteira de Calciolândia para quatro dos sete filhos: Álvaro, engenheiro mecânico e um dos membros do conselho de administração da holding, a advogada Laura e a médica Heloísa estão diretamente envolvidos com a gestão da propriedade, e Luciana, que mora nos Estados Unidos.

Dois filhos não quiseram participar da partilha do agronegócio da família e um, Flávio, assumiu sozinho a criação de gado nelore na Fazenda Colonial, em Janaúba, norte de Minas Gerais, mantida desde a década de 1970. Os quatro irmãos que assumiram a fazenda leiteira acredi- tam ser uma equipe afinada para tocar em frente o trabalho do pai, em função da formação profissional de cada um. Heloísa, por exemplo, tem foco no manejo e nas práticas de bem-estar animal. “A produção saudável de alimento é um questionamento de toda a sociedade”, diz. “Nós, como produtores, devemos atender a esse anseio.”

Laura tem foco na governabilidade do legado deixado por Andrade. Para ela, a missão-tarefa é continuar um trabalho que emprega na fazenda 59 pessoas e que abastece de genética muitos rebanhos de gado leiteiro no País. “Sempre acompanhamos meu pai no agronegócio e sabemos como ele o tornou rentável”, diz Laura. “Quando um ganha, todos ganham.” Por ano, 20% do resultado líquido é distribuído entre os funcionários com funções executivas. Os demais recebem bonificações por produtividade, não necessariamente atreladas ao resultado econômico da fazenda. Por exemplo, para os funcio- nários que cuidam do bem estar dos bezerros nascidos. “Bezerros estressados não mamam direito e não se desenvolvem”, diz o zootecnista Dener Correa, há cinco anos trabalhando na fazenda. Em uma função executiva, Correa diz que todas as suas atenções estão voltadas para a gestão da equipe de campo. “A zootecnia é a parte mínima que uso no meu dia a dia”, diz. “O que mais faço hoje é manter uma equipe focada em resultados, um modelo que a família Andrade trouxe dos negócios urbanos.”

RITUAL: duas vezes ao dia, as vacas são levadas à sala de ordenha. A produção média diária, por animal, é de 16 litros de leite.

Herdeiros de andrade vão manter o aprimoramento do gado.

Para Álvaro, a fazenda só tem senti- do de existir se o melhoramento do gado andar junto com os resultados econômicos. “Nisso, sempre fomos unânimes”, afirma. Pelo desempenho das vendas de animais superiores em genética, parece que a lição número 1 da família é levada à risca. No ano passado, a receita com a venda de fêmeas foi de R$ 4,9 milhões. O preço médio das top de seleção foi de R$ 22,5 mil, o dobro do preço de animais da raça vendidos em leilões em todo o País. As duas mais recentes vendas de fêmeas top, uma em maio e outra no dia 3 julho, em um leilão para comemorar os 50 anos de seleção da fazenda, renderam R$ 765 mil. O valor se refere à metade da produção de bezerros e embriões das fêmeas Prateada e Chadanni.

Com a venda de sêmen dos touros criados na fazenda, e de embriões de matrizes top, a receita do ano passado foi de R$ 1 milhão. Entre os reprodutores, uma única dose de sêmen de Nobre TE da Cal custa R$ 50, mas salta para R$ 3 mil, caso o sêmen saia da empresa já sexado, para que nasça uma fêmea.

Nos últimos cinco anos, foram vendidas 190 mil doses de sêmen desse touro. Outro que já rompeu a barreira das 100 mil doses foi Benfeitor, morto em 2005 aos 18 anos de idade. Quem tem sêmen guar­ dado, não vende uma dose por menos de R$ 300. O touro foi por quatro anos seguidos o melhor repro­ dutor do País, no programa de melhoramento gené­ tico da Embrapa Gado de Leite, com sede em Juiz de Fora (MG), e pela Associação Brasileira dos Criadores de Gir Leiteiro (ABCGIL). 

Jordane Silva, administrador da Fazenda Calcio­ lândia não revela quanto do faturamento anual é representado pela venda de sêmen. Mas, pela quanti­ dade de doses comercializadas nos últimos 15 anos é possível ter­se uma ideia da importância da produção de fazenda, líder da atividade, no País. Entre 1996 e o ano passado, Andrade vendeu 700 mil doses. Esse volume representa quase 9% da produção nacional no período, de 7,9 milhões de doses de sêmen de gir leiteiro, segundo dados da Associação Brasileira de Inseminação Artificial (Asbia). “Nos últimos anos, a procura por sêmen tem aumentado porque o modelo de produção de leite a pasto hoje é uma realidade”, diz Jordane. “Quem tem vacas com baixa lactação procura por sêmen ou por touros.” Nesse nicho de mercado, a venda de touros a outros criadores ren­ deu mais R$ 1,5 milhão à fazenda. A média de preço dos touros, de R$ 7,5 mil, é 20% superior ao preço médio praticado no mercado da raça.

Andrade, que costuma bater na tecla de que é preciso ter gado produtivo no pasto, diz que hoje não é dono de mais nada. “Tudo que tenho está nas mãos dos filhos.” Mas quem ouve o que ele fala e vê os que os filhos fazem, pensa exatamente o contrá­ rio. “Meu pai está certo quando diz que o Brasil pre­ cisa produzir leite”, diz Álvaro. O País, com um re­ banho de 23,5 milhões de vacas leiteiras de todas as raças, produziu no ano passado 31,7 milhões de litros de leite. Na média, são 1,3 mil litros por ani­ mal, quantidade irrisória se comparada à dos Esta­ dos Unidos, com vacas que produzem em cada cria nove mil litros de leite.

Para melhorar a performance do gir leiteiro, o próximo passo na seleção genética da Calciolândia é tirar o bezerro de perto da mãe no momento da ordenha. Essa é uma característica da raça que compromete a produção: quando a mãe sente a falta da cria no momento da ordenha, reações quí­ micas em seu organismo travam a saída do leite. “É bem complicado organizar a ordenha de 121 vacas da raça duas vezes por dia”, diz Álvaro. Ho­ je, um dos principais trabalhos na fazenda é identi­ ficar os acasalamentos em que as bezerras, quando se tornarem adultas, soltem o leite com mais facili­ dade. “Sem a presença do bezerro é fácil mecani­ zar a ordenha, como acontece com as vacas cruza­ das.” Há alguns anos, a Calciolândia mantém 280 vacas girolandas para testar as características do gir nesse cruzamento. Muitas fêmeas desse lote ainda precisam de ajuda para que destravem o lei­ te no momento da ordenha. “Quando essa barreira for vencida, não há quem segure o gir”, diz Álvaro.

O Home e a lenda

O dia da visita da DINHEIRO RURAL à fazenda calciolândia também foi o dia para o pecuarista Olavo Ribeiro do Vale realizar um sonho: conhecer gabriel Donato de Andrade. “Queria apertar a mão do Andrade e agradecer pelo que fez à nossa pecuária”, diz Vale. “Esse homem é uma lenda.” Seu olavo, aos 85 anos, finalmente pôde se encontrar com o dono da calciolândia porque estava de passagem por Arcos. Ao ouvir o barulho do motor do avião de Andrade que aterrisava na fazenda, ele pediu ao filho Paulo Ribeiro, também pecuarista, que o levasse até a sede.
“A vida é corrida demais e nunca deu certo do Andrade estar na fazenda e eu na região.” Seu olavo nasceu em Luz, distante 100 quilô- metros de Arcos, se mudou para goiás e depois para curianópolis, no Pará, onde cria gado comercial em nove fazendas. “sou produtor de carne, mas o Andrade é muito mais”, diz. “ele faz leite, carne, cavalo mangalarga da melhor qualidade, e mostra o que tem de bom, pra todo mundo aprender como se faz.”

O leite que jorrou: Como foi o melhoramento genético:

Na década de 1970: produção média por vaca era de 2.267 litros > o período de lactação era de 278 dias
Hoje, com a genética melhorada: produção média por vaca é de 4.622 litros > o período de lactação passou para 286 dias