O produtor rural Franke Djikstra completou 77 anos em 15 de agosto. Nascido na Holanda, sua história de vida daria um livro. E é isso que Djikstra tem feito há cerca de um ano. Há dias em que ele passa até dez horas escrevendo e reescrevendo sua biografia, que terá cerca de 200 páginas e deve ser publicada até o fim do ano. Pensado como um legado a seus filhos e netos, “Sobre o mesmo sol”, título já escolhido para a obra, conta a história do produtor que migrou para o Brasil aos cinco anos de idade e se tornou um dos pais do sistema de plantio direto no País, técnica que revolucionou a agricultura brasileira dos anos 1990 para cá, e que tem como fundamento a recuperação e perpetuidade da fertilidade dos solos. Atualmente, o plantio direto é utilizado em cerca de 32 milhões de hectares de lavouras no País, metade da área cultivada com grãos. É a maior área do mundo e esse estado da arte contou com uma contribuição significativa de Djikstra. “O mais importante é saber que nós estamos aqui de passagem e que cuidar do campo é perpetuar a nossa vida”, diz o produtor. “Sempre tive vontade de buscar soluções para o mundo, isso mexe comigo.”

O plantio direto é, na verdade, o PoupaTerra do século 21. Em vez de abrir mais áreas para plantar, o sistema ajuda a recompor o solo e a aumentar a produção de grãos por hectare. Essa é a medida da modernidade: o País não necessita de abrir novas áreas. A tarefa, agora, é melhorar o desempenho da lavoura. Num exercício simples, seria dizer que os 228 milhões de toneladas de grãos colhidos na safra passada poderiam rapidamente subir para 250 milhões de toneladas, por exemplo, usando a mesma quantidade de terra. No caso da soja, que hoje tem uma média de 3.364 quilos por hectare, elevar essa média para quatro mil quilos equivaleria a produzir 140,6 milhões de toneladas do grão a mais por safra, 18% acima da atual produção.

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Junto com os filhos, Djikstra é dono da fazenda Frank’Anna, localizada no município de Carambeí (PR), propriedade considerada um modelo de manejo agrícola. A produtividade média da soja que Djikstra planta é de 4,7 mil quilos por hectare. São dois mil hectares, nos quais a família cultiva também milho, trigo, aveia e cevada. Mas o agricultor paranaense desconversa sobre a sua importância na transformação da agricultura brasileira. “Hoje tem muita gente boa cuidando da terra, fazendo trabalhos excelentes”, afirma ele. “Nós somos apenas uma parte da história.”

Natureza Sábia: no plantio direto, as raízes de uma planta se aprofundam, à medida que o solo é recomposto. Por isso, pouca palha na lavoura (abaixo) é sinal de um sistema frágil

De fato, Djikstra é parte do movimento que contou com outros dois pioneiros da técnica – os também paranaenses Herbert Arnold Bartz e Manoel Henrique Pereira –, mas ainda agrega muitos ouvintes em busca de suas considerações sobre o atual momento do sistema PD, como é chamada a técnica do plantio direto. Vale registrar que o primeiro plantio em sua fazenda ocorreu em 1976, duas décadas antes do estouro do método por todo o País. Não por acaso, no início de agosto, Djikstra recebeu na fazenda um grupo de argentinos interessados em conhecer a propriedade. Na ocasião, ele mal havia desmanchado a mala de uma viagem de três dias a Sorriso (MT), onde participou do 16º Encontro Nacional de Plantio Direto, um evento que acontece a cada dois anos, reuniu nesta edição 44 palestrantes, cerca de mil produtores e que é promovido pela Federação Brasileira de Plantio Direto e Irrigação (FebraPDP). Antes disso, em julho, Djikstra esteve no Global Agribusiness Fórum (GAF), em São Paulo, um dos mais importantes eventos internacionais que acontece no País, com um público de 1,2 mil participantes. Ele fez parte de uma mesa na qual o tema foi “o agro que produz e preserva.” E não fugiu das investidas de um grupo de ambientalistas que desconsideram o agronegócio como agente preservador da vida humana. Sobre o uso de defensivos agrícolas, por exemplo, ele disparou “prefiro morrer aos 90 anos, comendo alimentos tratados com agrotóxicos que morrer aos 40 anos, de fome”.

O produtor, que em janeiro estreia no papel de bisavô de um garotinho, sabe que embora o sistema PD seja uma realidade no País, ainda há um futuro de desafios a serem vencidos e que há muito trabalho pela frente. O PD é uma das técnicas mais acessíveis ao produtor, com dois princípios básicos: provocar distúrbios mínimos do solo, não revolvendo a terra, e ter uma cobertura permanente sobre essa terra, para protegê-la. A esse sistema conservacionista foi sendo integrados outros manejos, como cultivar as lavouras de modo alternado, o que significa rotacionar os cultivos de uma determinada área com cerca de cinco plantios diferentes, e fazer o chamado controle integrado de pragas, no qual as ações preventivas se sobressaem às medicamentosas. Djikstra afirma que, quando bem empregada, a técnica pode levar a uma economia que varia conforme a lavoura e a região, mas que seguramente está entre R$ 200 até R$ 500 por hectare. Isso significa que se os 61,7 milhões de hectares cultivados na safra 2017/2018 estivessem no sistema PD, os produtores brasileiros economizariam R$ 12,3 bilhões.

Para o agrônomo João Pascoalino, doutor em ciência do solo pelo Instituto James Hutton, na Escócia, o produtor de fato consegue obter ganhos econômicos no sistema, mas pela grandiosidade e diversidade das lavouras é difícil dimensionar a sua extensão. “Não há dúvida de que o sistema convencional de plantio está em desuso”, afirma ele. “E que a adoção do PD, por ser uma técnica simples, ainda vai aumentar no País. Mas há regras para implantá-lo.” Entre elas está a correção da acidez do solo, nivelar a fertilidade em toda a área e verificar se o lençol freático está muito próximo da superfície do solo. Em resumo, são necessários investimentos. O mais importante, para Pascoalino, é realizar uma boa rotação de culturas e que a sucessão é perigosa. Explicando: os especialistas afirmam que é necessário pelo menos três culturas plantadas em sequência alternada, para que haja diversidade de matéria orgânica no solo. É nesse processo que sobra palha incorporada à terra, de uma cultura para outra. O que esses profissionais afirmam é que a sucessão de culturas, ou seja, plantar soja e na sequência o milho, e na safra seguinte repetir a receita, pode levar a um desgaste do sistema justamente por não produzir palha suficiente, levando-o à fragilidade. Isso significa, por exemplo, um ataque mais fácil de pragas. Na sucessão, é preciso muito cuidado para não comprometer a produtividade da lavoura. Um sistema mal implantado e não gerenciado pode levar a grandes prejuízos econômicos e ambientais, como perdas de fertilizantes e corretivos de solo e o mais grave, erosões.

Alargando as fronteiras: João Pascoalino, coordenador do Cesb, diz que o plantio direto tem potencial para crescer no País (Crédito:divulgação)

Pascoalino é coordenador técnico do Comitê Estratégico Soja Brasil (Cesb), uma organização civil mantida por empresas do setor, que tem como principal atividade promover um desafio anual de produtividade entre agricultores de soja. Marcelino Flores de Oliveira, da fazenda Sete Povos, em São Desidério (BA), onde são cultivados 7,2 mil hectares de soja, milho e algodão é um exemplo a ser seguido quando o assunto é o PD. A produtividade média de sua lavoura de soja na safra 2017/2018 foi de 5,1 mil quilos por hectare. Mas, na área escolhida para participar do concurso, como manda o regulamento, a média foi de 6,2 mil quilos. A análise econômica realizada pelo Cesb mostra que para cada real investido na lavoura, o retorno foi de R$ 3,40.
No mundo, a estimativa é de que haja 111 milhões de hectares no sistema PD, cerca de 8% da área cultivada. Seus inventores já foram ultrapassados pelo Brasil. A técnica nasceu nos Estados Unidos na década de 1940, depois da Segunda Guerra Mundial, mas não havia máquinas que dessem conta da tarefa de não revolver o solo, princípio do plantio convencional. Esse problema foi solucionado na década de 1970, quando o sistema começou a ganhar o mundo. Nos Estados Unidos, cerca de 26,5 milhões de hectares são cultivados em PD. Em outros países, como Argentina, Austrália, Canadá, o sistema também tem importância no total das lavouras cultivadas. A técnica é recomendada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), como um método conservacionista completo, e tem o Brasil como modelo.

Voz no campo: para o presidente da FebraPDP, Jônadan Hsuan Min Ma, as pesquisas vão sustentar o avanço do plantio direto

Para Jônadan Hsuan Min Ma, produtor rural e presidente da FebraPDP, o Brasil pode aumentar sua área de PD, puxado pelo aumento do plantio de soja. Hoje, a área de cultivo do grão, entre convencional e PD, é de 35 milhões de hectares. “A cultura da soja é o principal carro-chefe do sistema, do Rio Grande do Sul às áreas mais ao Norte, como Maranhão e Piauí”, diz Min Ma. “Não podemos retroceder em seu uso, daí a necessidade das pesquisas regionais para que elas respondam às necessidades de cada área.” No evento de agosto, em Mato Grosso, o tom das palestras foi o de alerta máximo. A maior parte delas mostrou estudos sobre compactação do solo, perda de nutrientes, como as raízes das plantas interferem na produtividade e os benefícios da rotação.

Na fazenda do produtor Flávio Faedo, 58 anos, em Rio Verde (GO), as regras que regem o plantio direto jamais são transgredidas. Filho e neto de produtor gaúcho, ele ainda se lembra muito bem do ano de 1979. Foi nessa época que chegou à propriedade da família, em Coxilha, na região de Passo Fundo, uma plantadeira americana para o primeiro plantio direto realizado pela família. “Quando me mudei para Goiás, em 1985, plantei três anos em sistema convencional, mas no quarto ano mudei”, diz ele. “É o que tinha a fazer.” O motivo que o levou ao sistema PD foi justamente a erosão, que começava a tomar conta dos 80 hectares da área de cultivo. O agricultor via seu pequeno patrimônio escorrendo pelas mãos. Mas não foi fácil adaptar-se ao PD. Ele conta que no início não conseguia formar palhada para proteger o solo da fazenda. Isso porque não havia uma segunda safra de milho, como acontece atualmente. Faedo colhia a soja e deixava formar mato no lugar da lavoura. “Não tinha como formar palha. Mas com o advento da soja precoce e a possibilidade do cultivo de milho como segundo safra, a situação começou a mudar”, diz ele. “Fomos evoluindo. Antes não existia milho em Goiás e hoje é uma cultura que gera ao Estado R$ 11 milhões por safra, somente de ICMS.” Faedo cultiva atualmente 1,5 mil hectares de soja, de onde tira 3,9 mil quilos por hectare, equivalente a 65 sacas. De milho são 1,3 mil hectares, com 8,4 mil quilos por hectare (140 sacas). No caso da soja, o custo de produção é de 55 sacas e no milho, 80 sacas. “Para fazer plantio direto é preciso quase conversar com o solo”, afirma o produtor. “Ouvir o que ele está te falando e ter equilíbrio no uso de insumos.”

Assim como Djikstra, Faedo também faz parte de uma geração de pioneiros do plantio direto e não quer parar. Ele foi um dos primeiros a experimentar a técnica em sua região, faz parte da Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano (Comigo) e fundou o Clube Amigos da Terra, em 1993. O clube foi um movimento que reunia, na época, 130 produtores da região pelo menos uma vez por mês, para aprender e contar suas experiências no plantio da lavoura. Hoje, de acordo com Faedo, 95% dos produtores da região utilizam o sistema PD. Além das longas conversas, o clube recebia convidados para troca de experiências, entre eles Djikstra. “O Paraná mostrava que era possível ter sucesso com o PD”, afirma ele. “Gente como Djikstra, Bartz e Manoel Pereira são imortais.” Por conta dos mestres, Faedo considera que já deu um passo certo e agora caminha para a segunda etapa no trato com a terra. O foco é a relação biológica do solo, na qual a ideia é usar produtos que ele considera menos agressivos, como os fertilizantes biológicos. “Sou cria de fazenda, desde pequeno”, afirma o produtor. “Por isso preciso passar a terra para a próxima geração, melhor do que encontrei.”