06/03/2023 - 19:18
Na década de 1970, o Norte da Califórnia, nos EUA, passou por um processo bem particular. A presença abundante de silício, matéria-prima para resistores e semicondutores, atraiu grande número de fábricas de componentes eletrônicos para a região. Logo em seguida, empresas de tecnologia também migraram para lá, criando grande concentração. Google, Apple e Meta, entre elas. Por sua característica geográfica e pela presença do elemento químico, a região começou a ser mais conhecida pelos novos moradores como Vale do Silício do que pelas cidades que ali estavam — Palo Alto, São Francisco e Santa Clara. Essa mesma ideia foi trazida e tropicalizada no Brasil, pelo agronegócio.
Quem quiser conhecer o Vale do Silício brasileiro tem que rodar 160 km a partir da cidade de São Paulo. Ao fim do trajeto, chegará em Piracicaba. Lá, no entanto, não tem silício. Nem as big techs. Mas sim uma concentração de empresas de todos os tamanhos e finalidades que usam a tecnologia para inovar o agro nacional.
A formação do polo se deu a partir de investimentos do município e do apoio da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). A iniciativa foi um chamariz para as agtechs. Das 1.703 startups especializadas em criar soluções tecnológicas para o agro no Brasil, 61 estão na cidade. Apesar de parecer pouco, essa é a segunda maior concentração, perdendo apenas para a capital do estado.
Foram várias as razões para que o polo desse certo. Além da presença da Esalq-USP, a localização privilegiada com diversas propriedades rurais no entorno e fácil logística foram determinantes. Além, claro, de um plano estratégico que foi colocado em prática pelo governo e academia.
Foi assim que, de dentro dos muros da Esalq, surgiu a Incubadora de Empresas Agrozootécnicas, a Esalqtec. Instalada na fazenda Areão, o espaço com 130 hectares serve de abrigo para as empresas de tecnologia. Segundo Sergio Marcus Barbosa, gerente executivo da Esalqtec, a instituição é um ambiente de geração de conhecimento e de formação de recursos humanos. “O papel que as universidades do Vale do Silício tiveram nos EUA é similar ao da Esalq no ecossistema de Piracicaba”.
Muitas das startups da região foram formadas na universidade. Ali aprenderem, entre outras coisas, a avaliar o risco tecnológico e de mercado, entendendo as possibilidades de sucesso dos projetos e sua viabilidade econômica. “Somos um pequeno ecossistema dentro de outro maior, concretizando muita conexão com outros ambientes e criando oportunidades”, disse Barbosa.
CASES Um exemplo de sucesso da Esalqtec é a Smartagri, que atua com ferramentas digitais na área de fenotipagem e experimentação agrícola. Seu sistema Phenosys avalia o crescimento de plantas dentro de casas de vegetação. O usuário apenas programa os horários para a realização das avaliações e o sistema se desloca de forma autônoma sobre as unidades experimentais coletando imagens e avaliando milimetricamente os parâmetros de crescimento via inteligência artificial.
Com isso o pesquisador deixa de depender de avaliações empíricas, reduz a mão de obra e o custo de pesquisa, tornando as avaliações mais confiáveis e rastreáveis. Segundo Marcos Nascimbem Ferraz, CEO da empresa, muitas tecnologias que poderiam causar ganhos significativos para a produção, às vezes nem chegam a ser comercializadas devido à ineficiência do processo de validação. Mas a digitalização veio resolver esses gargalos.
A Smart Sensing também faz parte do ecossistema da Esalq e foca na solução Weed-It, sistema de pulverização agrícola com tecnologia holandesa que aplica os defensivos somente onde é necessário. Os principais clientes são produtores de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar. Segundo o CEO Mateus Tonini Eitewein, além da redução do uso dos químicos, há ainda os ganhos indiretos como a manutenção da qualidade ambiental e do solo, aumento do rendimento operacional do pulverizador e da produtividade por diminuição do efeito residual de herbicidas.
Dentro desses muitos círculos que colaboram entre si, há também o Agtech Garage, hub de inovação que reúne tanto startups como grandes empresas. A proposta é atuar como orquestrador de uma rede conectada que inclui todo o ecossistema. Para José Tomé, AgTech Garage Leader e Partner PwC Brasil, há uma demanda crescente por soluções para a agricultura e a pecuária de baixo carbono num contexto em que é preciso produzir mais com menos.
CORPORAÇÕES As startups são muitas, mas o Vale também conta com grandes players. Um deles é a gigante de energia e produção sucroalcooleira, Raízen. Em 2017, a empresa construiu na cidade o hub de inovação Pulse. Nesses 5 anos realizou mais de 90 projetos-piloto com startups. Em contrapartida, a companhia ganha na experimentação e conexão com novas tendências. “O Pulse é uma engrenagem importante na nossa estrutura de inovação e, por meio dele, viabilizamos a oxigenação de ideias dentro e fora de nossas operações”, disse à RURAL José Massad, diretor de TI & Digital da Raízen. Projetos da iniciativa já captaram mais de R$ 50 milhões em benefício financeiro potencial na Raízen e com seus fornecedores, sendo R$ 35 milhões já consolidados.
Forte presença da academia, com a Esalq-USP, de propriedades rurais no entorno além de investimento de grandes marcas em P&D viabilizaram a criação do Polo
Outra gigante presente em Piracicaba é a Bayer. A empresa não realiza investimentos em dinheiro nas startups brasileira, função que faz parte do time global. Ainda assim, não deixa de contribuir com o ecossistema por meio de investimentos em conhecimento e mentorias. “À medida que a gente reconhece uma tecnologia que nos interessa, firmamos um contrato de codesenvolvimento com a startup, contribuindo com conhecimento e infraestrutura”, disse Dirceu Ferreira Junior, líder de Inovação Aberta na Divisão Agrícola da Bayer para a América Latina.
Com uma demanda cada vez maior por tecnologia do campo aliada aos resultados obtidos por lá, Piracicaba tem tudo para imitar de novo o mestre e se tornar uma referência em inovação, mas dessa vez para o agronegócio global.