31/07/2020 - 7:50
A construção de um conjunto habitacional em terreno vizinho à Reserva Indígena do Jaraguá, na zona norte de São Paulo, não é de competência federal, disse o Ministério Público Federal. Para o procurador Matheus Baraldi Magnani, o processo, que tem liminar da Justiça Federal impedindo a empresa Tenda de construir 1.912 moradias, pelo Minha Casa Minha Vida, deve ser decidido na Justiça estadual. A construção foi interrompida em fevereiro, quando a comunidade guarani entrou na área para protestar contra a construção.
“Não há invasão de território indígena”, diz o documento do MPF encaminhado em 29 de junho à Justiça Federal em São Paulo. Ele ressalta que o terreno é privado e que o debate sobre impacto ambiental no local é competência do governo paulista. Nessa mesma linha, o Ibama já havia também informado, a 5 de junho, que o licenciamento ambiental, nesse caso, não cabe à União.
A decisão que paralisou a obra é da juíza Tatiana Pattaro Pereira, da 14ª Vara Cível Federal. Pelo projeto da construtora, o novo conjunto habitacional da Tenda deve se estender por quase 70 mil m². A primeira parte, de 20 mil m², prevê dois condomínios, com 11 torres de 10 andares e 880 apartamentos.
A segunda projeta mais 1.032 unidades em dois condomínios, com 5 torres de 18 andares, mais uma área de 937 m² que foi doada à Funai. São apartamentos de 40 m², de dois quartos. O imóvel fica em Vila Clarice, na Rua Comendador José de Matos – junto à reserva e à beira das rodovias que levam ao interior do Estado.
No início do ano, líderes indígenas das comunidades guaranis m’bya e nhandeva, que vivem na Reserva Jaraguá, protestaram contra a obra, alegando a destruição de árvores e animais constitui uma ameaça ao patrimônio histórico ligado à antiga corrida do ouro paulista. Os guarani argumentaram que queriam “rezar” pelas árvores e que a proximidade do novo bairro prejudicava o modo de vida da reserva.
De seu lado, a Tenda informa que tem as autorizações necessárias da Prefeitura e da Secretaria do Verde para a derrubada das 528 árvores do terreno – e o projeto, acrescenta, já prevê uma compensação ambiental com replantio. Na réplica, os guaranis afirmam que não têm interesse econômico no terreno e querem a um parque ecológico no local.
O documento do procurador federal destaca ainda que “os indígenas da aldeia do Jaraguá, ora representados pela Comissão Tekoa Jaroguata Petei Mbaraete, já se encontram profundamente vinculados à cultura ocidental, vez que integrados à vida urbana” e vivem em área densamente urbanizada, “vizinha à estação de trem, rodovias, bares e postos de gasolina”.
Na ação, o procurador afirma ainda que trata-se de uma “possível” influência negativa do futuro empreendimento em terra indígena, “que não pode ser presumida, e que deve ser averiguada em estudo de componente indígena a ser realizado em processo de licenciamento ambiental estadual”. Para o procurador Magnani, o cerne da questão é o possível descumprimento de legislação ambiental pela Tenda. Ele até menciona, na decisão, que o estudo de componente indígena “pode ser realizado em qualquer instância, seja federal, estadual ou municipal”.
Racismo
“Esse procurador fez declaração racista contra nós. É assim como se por eu falar português eu deixasse de ser guarani”, disse Thiago Djekupe em entrevista ao Estadão. “Esse procurador, que pela lei devia nos proteger, fala com preconceito. Muitos da nossa gente já estão tristes, em depressão, estão sofrendo com isso”, acrescenta Thiago, que trem 26 anos. “A gente já fui muito agredido, na escola, na rua, por ser guarani.” Ele vê a situação com muita tristeza. “Nós não temos como nos defender, temos medo de que ele, por ser procurador, mande nos prender. Não é a primeira vez desse preconceito contra nós. Em 2014, já aconteceu isso”.
De acordo com o líder indígena, os guaranis não querem ocupar a área da Tenda, mas reivindicam que seja feito o estudo a respeito do componente indígena no local, previsto na legislação. “Nós temos esse direito”, afirmou. “Agora estamos esperando a juíza. Não sabemos o que vai acontecer.”
Chamando os integrantes da comunidade de “nossos guerreiros”, Thiago enfatiza a tristeza que se abateu sobre todos. “Nosso rio foi poluído com a especulação imobiliária”. Segundo ele, a construtora teria ainda desrespeitado uma ordem judicial colocar máquinas no terreno depois que eles deixaram a área. “Eles até já se desculparam lá com a juíza, mas desrespeitaram a ordem judicial, sim”, insiste o líder.
Há uma semana, o vereador Gilberto Natalini (PV) entrou no assunto. Em oficio mandado à Prefeitura, informou que a comunidade indígena planeja também a construção de “uma cerca ecológica com plantas, flores e frutos que possam ser utilizados pela comunidade, pelas abelhas nativas e demais animais que vivem na região”. E pergunta se a Prefeitura pode pagar “as despesas da implantação da cerca”.
Procurado pelo Estadão, Magnani informou, por meio da assessoria do MP, que não poderia falar. No MP estadual, a informação foi a de que a Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital instaurou inquérito para apurar a regularidade da obra. “A Promotoria aguarda a remessa, pela municipalidade, de cópia dos procedimentos administrativos de aprovação para que sejam remetidos ao órgão técnico do MP (CAEx) para análise”.
Em nota, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente informa que “na obra, localizada na Rua Comendador José de Matos, n° 149″, consta uma ação relacionada ao corte de árvores, movida pelo Ministério Público Federal, impossibilitando assim o avanço do empreendimento até que as partes envolvidas no caso se manifestem”.
Essa tarefa, pelo visto, não será rápida. Essas “partes envolvidas” incluem as Defensorias Públicas da União e do Estado, a Prefeitura, a Tenda Negócios Imobiliários, o Ministério Público, Ibama e Cetesb.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.