Embaixador do Brasil na OMC fala sobre o impacto da crise financeira nas negociações internacionais e os desafios para o ano que se inicia

O embaixador do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), Roberto Azevedo, tem sido um dos princiapais atores nas dicussões sobre comércio exterior. Homem responsável por reconduzir o País de volta às negociações da até agora fracassada Rodada Doha, ele vê nos Estados Unidos o maior problema para a finalização de acordos multilaterais. Para 2009, segundo ele, o Brasil terá de buscar novas alternativas para melhorar seu desempenho nos mercados externos. Confira, a seguir, a entrevista exclusiva que DINHEIRO RURAL preparou.

DINHEIRO RURAL – Quais as expectativas para as negociações da Rodada Doha neste ano?

ROBERTO AZEVEDO – Estamos com um cenário bem indefinido. Havia a expectativa de que o diretor-geral da OMC convocasse uma reunião ministerial, no final do ano passado, entre os países para tentar chegar a um acordo sobre Doha. Mas essa reunião acabou não ocorrendo e com isso ficou uma indefinição no ar. É provável que passem meses até que surja algum tipo de avanço.

RURAL – Quais os principais pontos que emperram as negociações?

AZEVEDO – Temos as negociações multilaterais, que vão resultar em compromissos novos. Por exemplo, na área de bens industriais, a maior parte dos compromissos é sobre redução tarifária. Na agricultura você tem coisas semelhantes. Todos os países vão reduzir suas tarifas, mas há produtos sensíveis, com os países querendo reduzir menos algumas tarifas. Além disso, há em curso uma negociação sobre os níveis de subsídio na agricultura. A grande dificuldade é chegar a um acordo sobre as modalidades, ou seja, as fórmulas que os países vão aplicar para reduzir as tarifas e os subsídios. Só quando resolvermos as modalidades para agricultura e bens industriais é que os outros temas irão avançar. Basicamente, a agricultura é o coração da Rodada de Doha.

RURAL – Mas o sr. acredita que as negociações avancem neste ano?

AZEVEDO – Em julho do ano passado, as modalidades de agricultura e bens industriais quase foram concluídas. O diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, propôs uma espécie de pacote que propunha níveis de corte para vários grupos. Era um pacote de equilíbrio muito delicado. Mas em relação à agricultura, no que diz respeito às salvaguardas especiais para países em desenvolvimento, não houve acordo. Sobretudo, houve um impasse entre EUA e Índia, que parou todo o resto das negociações. Agora em dezembro iria se tentar desbloquear esse ponto, finalizar as tais modalidades com base no pacote de julho.

RURAL – E por que isso não ocorreu?

AZEVEDO – De lá para cá, os americanos dizem que se arrependeram do que negociaram em relação aos bens industriais. Agora eles querem aumentar os cortes tarifários em bens industriais por meio do que chamamos de iniciativas setoriais. Ou seja, eles querem que os países façam cortes adicionais, além dos que estavam previstos na fórmula da modalidade, em setores específicos, como o de químicos, por exemplo, que é o mais desedesejado pelos americanos. Essa posição americana desequilibra tudo que tinha sido negociado em julho. Porque eles querem esses cortes adicionais em bens industriais, mas não oferecem nada em agricultura.

RURAL – Então os EUA travaram as conversas…

AZEVEDO – Temos dois problemas. O primeiro é que Brasil, China e Índia, que são os principais países que os EUA têm interesse que participem desses cortes setoriais, não estão dispostos a cortar, porque a fórmula já oferece cortes importantes. O segundo problema é que os americanos querem esses cortes sem oferecer nada em troca. Essa posição americana é o principal fator que inviabilizou a reunião em dezembro.

RURAL – Há alguma contraproposta brasileira sendo discutida?

AZEVEDO – Tanto Brasil, como Índia e China querem manter o que foi acordado em julho. Se for mudar o que foi negociado, nós vamos ter mais um problema. Tínhamos um pacote equilibrado em julho e agora os americanos mudaram. Eles querem mais cortes tarifários em bens industriais por meio de iniciativas setoriais. Os países em desenvolvimento não querem fazer isso e, se quisessem, não estariam recebendo nada em troca. À luz desse impasse, o diretor-geral pensou em realizar a reunião em dezembro, mas desistiu já que, se ninguém mudasse de posição, o fracasso seria certo.

RURAL – A eleição de Barack Obama nos EUA pode melhorar esse cenário?

AZEVEDO – Isso, sinceramente, é algo que ninguém sabe dizer. Não há um cenário que aponte algo em relação a isso. Acho que, na verdade, a grande duvida é em relação à crise econômica. Se a crise se aprofundar mais neste ano, será muito mais difícil as pessoas concordarem com cortes tarifários adicionais ou em cortar subsídios. Então fica ainda mais difícil conseguir fechar e concluir as modalidades. A mudança no governo dos EUA, que ninguém sabe o que vai acontecer, e um possível aprofundamento da crise são dois pontos sensíveis.

RURAL – O sr. acha que esse cenário de crise pode aumentar a tendência de os blocos se protegerem mais?

AZEVEDO – Talvez sim. Cada país vive uma realidade diferente. O cenário está muito indefinido, então ainda é cedo para fazer esse tipo de análise. Mas é claro que em um momento de crise é sempre mais difícil negociar reduções tarifárias, pois a tendência de todos é recorrer um pouco ao protecionismo para poder salvaguardar empregos, manter a atividade econômica, pelo menos dentro das fronteiras, mais protegida.

RURAL – Quando o Brasil venceu os EUA na questão do algodão na OMC, dizia-se que isso poderia ser usado na rodada de Doha. Isso de fato aconteceu?

AZEVEDO – Sim, e foi importantíssimo. Tanto que no ano passado tivemos uma reunião ministerial em Hong Kong, em que ficou acordado que no caso específico do algodão os cortes de tarifas e de subsídios teriam que ser mais profundos e mais rápidos. Dessa forma, se todos os produtos precisam reduzir os subsídios de um determinado montante, no algodão essa redução terá que ser obrigatoriamente maior. Se por acaso ficar decidido que essas reduções ocorrerão em um determinado período, no algodão isso tem de ser aplicado de forma mais rápida. Essa é uma mudança importante e aconteceu justamente por conta do problema que nós evidenciamos com o contencioso que ganhamos contra os EUA. Então, no caso de negociações sobre modalidades de agricultura, o algodão seguramente será objeto de restrições específicas, que vão levar a cortes de subsídios mais profundos e mais rápidos.

RURAL – Então não se fala mais em aplicar retaliações comerciais aos EUA…

AZEVEDO – Essa possibilidade existe sim e está sendo levada em conta. Toda essa negociação que lhe expliquei está condicionada à Rodada de Doha, mas e no caso de a Rodada não acontecer? Até agora os EUA não implementaram a decisão da OMC. O acordo só está no contexto da rodada. Se não houver rodada, os americanos vão ter que fazer alguma coisa e, se não fizerem, o Brasil pode, sim, retaliar. No momento estamos no mecanismo de soluções de controvérsias, aguardando um procedimento arbitral que vai determinar qual é o montante que o Brasil pode retaliar.

RURAL – Mas o valor da retaliação não estava estipulado em US$ 4 bilhões?

AZEVEDO – Não é bem assim. As pessoas têm esse número na cabeça, mas na verdade o valor de US$ 4 bilhões era o montante dos subsídio americanos na época que fizemos o contencioso contra os EUA. Naquela época, os subsídios eram mais altos e o governo americano implementou mudanças em alguns dos seus programas, o que já muda esse número. Além disso, os montantes dos subsídios oscilam muito, de ano para ano. Vai depender muito da metodologia de cálculo que os árbitros usarem e do montante de despejo, provavelmente. Tudo vai depender da arbitragem. Nós pedimos autorização para retaliar em um montante próximo a esse valor, mas pode ser decidido um valor abaixo e provavelmente será.

RURAL – E quais as dificuldades de se aplicar esse tipo de retaliação?

AZEVEDO – A decisão será tomada mais para a frente. A principal dificuldade é do ponto de vista econômico mesmo. Quando você aumenta as tarifas de importação de um determinado produto, às vezes pode ser um tiro no pé. Porque você pode encarecer insumos e encarecer sua própria cadeia de produção. Normalmente, quando se faz uma retaliação desse tipo, aumentando as tarifas de importação de produtos oriundos dos EUA, é preciso ter um estudo amplo e cuidado para se certificar de que você tem supridores alternativos, em outras regiões, para não encarecer a cadeia de produção ou encarecer desnecessariamente o preço ao consumidor.

RURAL – Como estão as negociações que envolvem o Mercosul, como bloco econômico?

AZEVEDO – Estão caminhando. Há vários acordos sendo negociados, sobretudo com a União Européia. Mas há conversas também com a África, Índia, países do Golfo. No caso da União Européia, a grande dificuldade é a questão da rodada de Doha, já que eles só querem negociar com o Brasil depois que souberem quais serão os reais compromissos assumidos com o resultado da rodada. Os outros estão caminhando pouco a pouco. Na área multilateral existem os maiores problemas, principalmente na OMC, porque a Argentina está com dificuldades em fazer cortes tarifários, o que nos leva à necessidade de encontrar soluções tanto na OMC como internamente no Mercosul.

RURAL – Qual o impacto disso?

AZEVEDO – Toda vez que você negocia uma redução tarifária, esse corte tem que ser feito por todos os sócios. Mas a Argentina vive um momento político complicado, com processo de tentativa de reerguer o seu parque industrial. Essas coisas dificultam os movimentos de liberalização na Argentina e a crise econômica também não ajuda. Estamos conversando para achar uma maneira que permita que o Mercosul como um todo seja preservado, mas levando em conta as dificuldades que a Argentina tem no momento de fazer cortes tarifários.