08/05/2017 - 14:46
Quando a Polícia Federal convocou uma coletiva de imprensa, no dia 17 de março, para mostrar o inquérito de 353 páginas que resultou na Operação Carne Fraca, veio à tona uma situação que pode ter surpreendido a maioria dos brasileiros. Mas não os auditores fiscais federais agropecuários, um grupo de 2,7 mil funcionários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Há muito tempo as relações – por vezes nada transparentes no setor – incomodam esse grupo, embora a difícil equação entre interesses políticos, empresariais e sanitários seja parte da lida diária. “A pressão é rotina”, afirma Maurício Rodrigues Porto, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), servidor há 36 anos Mapa. “E aparece em forma de ameaças de transferência, de perda do emprego e até à integridade física dos auditores por parte das empresas.”
Nos últimos anos, a categoria cruzou os braços por diversas vezes, como em 2013, sempre com as mesmas reivindicações: a realização de concursos para a contratação de novos fiscais e de remoção, para regulamentar a movimentação interna dos fiscais, e a escolha de servidores de carreira para cargos no Mapa. Junte-se a isso o aparelhamento político das 27 Superintendências Federais da Agricultura (SFAs), que são representações do Mapa nos Estados, e está pronto o estouro da boiada – sem trocadilho. Até a Operação Carne Fraca, 21 cargos eram ocupados por indicação política, no caso do PMDB (10 cargos), PP com seis cargos, PSDB e PTB com dois cada um e PR com um no cargo. Essa disfunção tem contaminado o setor e manchado as ações corretas da maioria dos profissionais da inspeção, que têm a missão de garantir que as severas regras sanitárias aprovadas internacionalmente sejam implementadas. Entre elas a Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), ou em inglês Hazard Analysis and Critical Control Point (HACCP). O sistema de gestão de segurança alimentar prevê a análise das diversas etapas da produção de alimentos, determinando medidas preventivas para controlar perigos potenciais à saúde dos consumidores.
Os fiscais são os responsáveis por assegurar que os produtos de origem animal, como carne, leite e derivados, cheguem ao consumidor atendendo aos requisitos de qualidade e sanidade determinados pelo Mapa. Parte desse trabalho envolve liberar ou condenar cargas, determinar outros usos para as carcaças que não os planejados pelas empresas ou mesmo recomendar a interdição de uma unidade de abate. Como ocorreu na operação de combate à fraude de pescado, realizada no mês passado em oito Estados, com 30 fiscais recolhendo amostras em supermercados de todo País. Foi a terceira desde 2015, às vésperas da Semana Santa, época de grande consumo de peixe. Ou a Operação Leite Compensado, deflagrada em 2013 pelo Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, onde 167 pessoas foram denunciadas e 16 condenadas por adulteração do leite, como adição de formol, ureia e água oxigenada. Indústrias e transportadoras já assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TAC, no jargão jurídico) no valor de R$ 10 milhões no período, mas a fiscalização continua. No mês passado, os fiscais proibiram a venda de 9,1 mil quilos de creme de leite de três laticínios gaúchos, que estavam fora dos padrões previstos pela legislação brasileira. “São decisões que envolvem custos e podem causar prejuízos às empresas”, diz Porto. É por isso que os fiscais são pressionados a atender interesses que podem ser contrários aos do consumidor.
De acordo com dados da Operação Carne Fraca, era muito estreita a relação entre alguns dos 33 servidores públicos, incluindo fiscais, e funcionários das empresas que estão sob investigação. Entre elas, estão duas da Peccin, sendo uma unidade em Curitiba (PR) e outra em Jaraguá do Sul (SC); uma da Souza Ramos, em Colombo (PR); uma dos laticínios SSPMA, em Sapopemba (PR); uma unidade da Farinha de Carne Castro, em Telêmaco Borba, também no Paraná, e uma unidade da BRF, em Mineiros (GO). Nas conversas flagradas nas gravações da PF consta que um diretor de um das empresas citadas teria acessado o sistema interno do Mapa com a senha da funcionária Maria do Rocio Nascimento, então chefe do serviço de inspeção do ministério no Paraná. “Isso é gravíssimo”, diz Porto. “A senha é de uso exclusivo do servidor e dá acesso a informações, como registros de produtos e a situação dos estabelecimentos.” Não por acaso, o surrado movimento de reinvindição dos fiscais por mudanças, agora chamado de “a nova onda de fiscalização”, começa a ganhar força.
O marco foi a publicação do decreto 9.013, no dia 29 de março pelo governo Michel Temer, que atualiza o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (Riispoa). Entre outras medidas, o novo Riispoa aumenta as multas para irregularidades nas empresas para até R$ 500 mil, ante R$ 15 mil no texto anterior. Nele, foram incorporados itens que haviam sido assinados em decreto pela ex-presidente Dilma Rousseff, como a escolha apenas de servidores efetivos do Mapa para o cargo de superintendente estadual. “Nada foi colocado agora ou surgiu neste momento. Tudo estava previsto. É um assunto que vem de algum tempo, com centenas de pessoas envolvidas”, disse o ministro da Agricultura Blairo Maggi, durante a assinatura do decreto. “Construímos um regulamento que reflete a década, o ano de 2017, e não 65 anos atrás, quando ele foi construído”.
Além da reformulação das leis de sanidade, a nova onda da fiscalização vai exigir uma ginástica financeira para fazer mais, com menos. A Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA), que tem como secretário Luís Eduardo Pacifici Rangel, realiza oficinas de planejamento desde que assumiu o cargo, em 2015. No evento de fevereiro, para estabelecer metas para os próximos dois anos, ações de combate a fraudes estiveram em debate. “Na oficina do ano passado, identificamos os principais riscos internos e externos para produtos de origem vegetal”, diz Rangel. “Isso nos permitiu melhorar o relacionamento com a vigilância sanitária internacional.” Nos últimos anos, em função do aumento das exportações, o País tem recebido cada vez mais missões internacionais que vêm avaliar a indústria de proteína animal. Em 2009 foram 17 missões, nenhuma delas interessadas em outra coisa que não fosse esmiuçar com lupa a segurança alimentar. Na época, um único questionário respondido para o Japão, que hoje importa do Brasil 70% do frango que consome, pesou 54 quilos de documentos traduzidos para a língua do país.
No ano passado foram abatidos e processados 5,1 bilhões de animais, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos frigoríficos que funcionam 24 horas, a fiscalização é permanente, e em geral, fica sob responsabilidade de apenas um servidor. Nos casos em que as unidades de abate não funcionam em todos os turnos ou todos os dias, um mesmo profissional pode ser responsável por até seis unidades de abate. “Achamos necessário pelo menos mais 850 fiscais”, diz Porto.
O que resultaria em um quadro de 3,5 mil fiscais para monitorar 4,8 mil unidades de abate e processamento de aves, suínos e bovinos, além de todo o setor de fabricação de insumos e de outros alimentos, como sucos, laticínios e bebidas alcoólicas. O último concurso da pasta aconteceu em 2014, quando foram incorporados ao Mapa 232 fiscais agropecuários e nomeados 100 agentes de inspeção sanitária. O total de funcionários do Mapa é de 11 mil pessoas, para um orçamento de próximo de R$ 1,6 bilhão. Para a defesa agropecuária neste ano, o orçamento é de R$ 226,5 milhões. Nos dois anos anteriores, com orçamentos próximos de R$ 2 bilhões, à defesa coube cerca de R$ 330 milhões. O valor é irrisório para as dimensões do agronegócio brasileiro. Só para comparação, embora as atribuições do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda) sejam muito diferentes do que ocorre no Brasil, as 29 agências sob o seu domínio contam com 100 mil funcionários e um orçamento de US$ 24 bilhões previstos para 2017.