06/08/2021 - 17:00
Chefe do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), órgão responsável por fazer o controle externo das polícias, Mário Luiz Sarrubbo acredita que o Estado vive um cenário de queda sustentada da violência policial: “Com as câmeras corporais, deve melhorar mais”. Ao Estadão, o procurador-geral de Justiça afirma que políticas de controle devem levar em conta quem são as vítimas e que o racismo estrutural precisa ser enfrentado no País. Ele também critica o armamento da população e atribui a maior circulação de armas a mais confrontos. Para o procurador-geral, complexidades do sistema de Justiça contribuem para a sensação de impunidade.
São Paulo bateu recorde de mortes decorrentes de ações policiais no 1º semestre do ano passado. Já neste ano, a letalidade caiu 33%. É queda sustentada?
Embora o contexto nacional seja outro, de incentivo à violência, a PM de São Paulo está fazendo uma série de trabalhos internos para conter a letalidade. É a maior instituição policial do Brasil, com cerca de 80 mil homens, então veja a dificuldade de construir isso. O Ministério Público também faz trabalho envolvendo redes de proteção, identifica focos de violência, leva casos para a polícia e designa promotores para acompanhar eventuais abusos. Tudo isso, em algum momento, tem de refletir nos números. A nossa perspectiva é que seja uma queda sustentada. Com as câmeras corporais agora, deve melhorar mais.
O que aconteceu em 2020?
É muito difícil fazer um diagnóstico. Há um contexto: o Brasil vinha de um momento em que as armas de fogo eram recolhidas da população e, com o governo Bolsonaro, passaram a ser devolvidas. A polícia evidentemente teve mais confronto porque há mais armas circulando. Podem dizer: “Mas já não havia arma por causa do tráfico?”. Hoje tem mais ainda. Qualquer cidadão tem acesso e, por certo, essa arma vai cair em mãos inadequadas. Isso é muito ruim, porque nos leva ao aumento de confrontos e consequentemente de mortes. É só isso? Não, é um contexto genérico que pode ser indutor do aumento.
Em se tratando de letalidade policial, diferentes dados e pesquisas realizadas no Brasil apontam que há um padrão de mortos: homens, jovens e negros. Nesse caso, não é importante focar no perfil da vítima?
Sem dúvida. Na verdade, o Brasil ainda vive um racismo estrutural muito grande. É injusto imputar isso só à polícia ou ao sistema de Justiça. Temos de olhar para a sociedade como um todo. O que vou falar é chover no molhado: o racismo estrutural é grave, remonta à escravidão, à população negra que foi simplesmente jogada, sem direito a nada. Até hoje nenhum governo – de esquerda, direita ou centro – conseguiu superar o problema. Isso acaba se refletindo na questão da criminalidade e em consequência na letalidade policial.
O racismo estrutural reflete na atividade policial?
Afeta em tudo, mas no final acaba refletindo nesse índice de mortes. Não acho que haja racismo na Polícia Militar ou na Civil, não é isso. Até porque boa parte das corporações é formada por negros. Todas as nossas instituições têm esse defeito, é um problema brasileiro como um todo. Quantos negros temos no Congresso Nacional? Quantos negros temos no STJ (Superior Tribunal de Justiça)? E no Supremo? É sempre a minoria. Isso tudo acaba refletindo no número de mortes.
O comportamento de políticos e gestores públicos tem impacto na postura da polícia na rua?
Eu prefiro ficar sempre com a Constituição. Forças policiais e o Estado têm de cumprir seu papel: a manutenção da vida de quem quer que seja. Principalmente da vítima, mas também do criminoso. Intervenção policial que termina em morte não é motivo para comemoração.
Em Pernambuco, uma crise na segurança foi exposta após manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro serem reprimidas. O Ceará também testemunhou um motim em 2020. Quais razões existem para acreditar que São Paulo não corre risco semelhante?
Volto a insistir que o trabalho de profissionalização das polícias de São Paulo é de longa data. Não creio que a tropa tenha qualquer viés ideológico, mas sim profissional, de combate ao crime. Essas coisas não podem acontecer. Se houver, vai ser apurado.
Bolsonaro tem subido o tom contra o sistema eleitoral e isso também provoca manifestações sobre riscos de ruptura institucional. Em caso de golpe, há chance de as tropas aderirem?
Na segunda, o Ministério Público lançou nota ressaltando a importância do sistema democrático e das instituições. Eu sou entusiasta das instituições. Creio que elas não faltarão ao País e não haverá ruptura. Confio no Congresso Nacional, no Supremo, nas Forças Armadas, nas polícias e no Ministério Público. O Brasil chegará às próximas eleições, o sistema garantirá, não obstante a existência de algumas falas que nós consideramos que não deveriam acontecer.
Quando era subprocurador, atuou no caso do Carandiru, que vai completar 30 anos e é um dos mais emblemáticos. Os PMs foram condenados no júri, mas a sentença foi anulada depois, na segunda instância, pelo TJ. Também aconteceu na chacina de Osasco e Barueri, conhecida como “a maior de São Paulo”…
Eu acredito no Tribunal do Júri e no sistema de Justiça. O Brasil envolve variáveis e, muitas vezes, a gente não alcança aquele resultado que a sociedade pretende. Isso envolve todo um sistema de apuração de provas capaz de construir um arcabouço probatório que leve à condenação. Há muita deficiência. Existe um déficit enorme de investigadores e peritos por conta da eterna crise que vivemos. As instituições tentam crescer, mas convivem com índice de miserabilidade muito grande no País e os investimentos não podem ser os desejados. Quando o sistema vai ser eficiente? Quando as instituições puderem se fortalecer. E incluo até o Ministério Público de São Paulo, que hoje tem um déficit de 200 membros. Isso significa cerca de 10% a menos da força de trabalho.
O principal problema está na fase de investigação?
A solução passa por incrementar, aparelhar e melhorar as condições de trabalho daqueles que são incumbidos de apurar os crimes. Não há mão de obra suficiente.
Em julho, o MP ofereceu denúncia contra 12 policiais no caso de Paraisópolis, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante uma operação. A promotoria vê “homicídio com dolo eventual”, que é uma interpretação mais dura comparada à da Polícia Civil, que havia indiciado os agentes por “homicídio culposo”. Por quê?
O MP tem de trabalhar sempre com os indícios. No momento de condenar, a dúvida deve contar a favor do réu. Mas, na hora de acusar, deve ser pela sociedade. A interpretação dos colegas (promotores) é que havia indícios de dolo eventual, não há outro contexto a não ser a prova dos autos e o que diz o Código de Processo Penal. Com o andamento do processo, vai se chegar a um resultado. A conclusão pode ser o que diz o MP ou pode ser de homicídio culposo.
A diferença entre homicídio culposo ou com dolo eventual é uma nuance jurídica, nem todo mundo entende. Para conseguir a condenação dos réus, é mais fácil trabalhar a tese em um júri popular ou com um juiz togado?
Com juiz togado, mas essa é uma opinião particular. Notadamente em contexto que envolve PMs pode ser mais difícil levar aos jurados porque a diferença é muito sutil e fica difícil de identificar em caso concreto. O sistema de Justiça é complexo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.