O encontro entre a águia e o condor selará a libertação de Abya Yala, de acordo com uma antiga profecia presente na cultura de diversos povos indígenas americanos. A águia representa o norte, enquanto o condor simboliza o sul, e esse voo simbólico significa a união de todos os povos originários de Abya Yala, como é chamado o continente americano.

A pesquisadora Bárbara Flores Borum-Kren acredita que “a profecia se cumpre sempre que os povos indígenas atravessam fronteiras geográficas impostas para construir coletivamente o bem viver”. 

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É o que Bárbara busca fazer com seu trabalho de pesquisa, que defende a reocupação de áreas degradadas pelos seus povos originários como a melhor maneira de promover recuperação ambiental e revitalizar práticas culturais, dando origem a “socioecossistemas resilientes e prósperos.”

Atualmente, Bárbara está nos Estados Unidos fazendo pós-doutorado na Universidade do Colorado, onde investiga a situação de territórios dos povos Ute, Walatowa, Navajo, Lakota, Odibwe e Yurokcomo em cinco estados norte-americanos. 

“Eu estou buscando fazer uma troca de conhecimentos com povos indígenas, que estão passando por esse processo de restauração da memória biocultural ou que já passaram, e também me adentrando mais no movimento do land back (retomada da terra, em tradução livre), que aqui é bem forte, pelo reconhecimento dos Estados Unidos enquanto território indígena”, explica. 

A pesquisa foi viabilizada pelo Programa Beatriz Nascimento para Mulheres na Ciência, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Bárbara também foi uma das contempladas por um edital de apoio a cientista negros e indígenas do Instituto Serrapilheira. 

O trabalho da pesquisadora Bárbara Borum-Kren se baseia em dois conceitos principais, a memória biocultural e as cascatas socioecológicas. 

“Toda essa relação que é construída ao longo de muitas gerações, de milênios, dos povos com o território, cria um vínculo tão forte que passa a ser uma relação de parentesco, que a gente chama até de floresta genealógica. Isso seria a memória biocultural a partir dessa perspectiva indígena. Ela atrela as questões biológicas do território com as questões culturais”, explica.

A pesquisadora defende que terras devastadas devem receber intervenções considerando a memória biocultural dos seus habitantes originários, o que provocaria as cascatas socioecológicas, processos em cadeia que levam tanto à recuperação ambiental, quanto ao resgate da identidade desses povos.

“Por exemplo, fazer todo o levantamento das plantas que são culturalmente importantes para o nosso povo, onde elas estavam distribuídas dentro do território e em qual quantidade, assim como dos animais, também são culturalmente importantes. E a partir desse diagnóstico, a gente consegue ver onde precisa atuar e intervir”, defende. 

De acordo com Bárbara, algumas experiências estadunidenses podem apontar caminhos para o Brasil. 

“No Colorado e na Califórnia, eles já fazem, por exemplo, projetos de restauração ecológica em parceria com os povos indígenas, utilizando os conhecimentos tradicionais para fazer a restauração de áreas degradadas. Também fazem gestão pública de parques naturais e áreas verdes em parceria com os povos indígenas que vivem no território”, esclarece.

Novas iniciativas, no entanto, segundo a pesquisadora, têm sofrido com as políticas educacionais do governo de Donald Trump, que vêm cortando o financiamento para pesquisas de temáticas consideradas progressistas, como os direitos da população indígena e meio ambiente. 

O trabalho de Bárbara, por enquanto, não foi afetado, mas ela foi orientada pela Universidade do Colorado a não sair do país, nem mesmo para participar de eventos em outros países, pelo risco de ser impedida de retornar aos Estados Unidos. 

O objetivo principal de Bárbara é que a troca de conhecimento com os povos norte-americanos contribua com o trabalho que ela desenvolve desde a graduação, voltado para a retomada e a recuperação do território Borum-Kren, na região de Ouro Preto, em Minas Gerais.

Foi isso, inclusive, que motivou Bárbara a se tornar a primeira pessoa de sua família com ensino superior. Desde criança, ela tinha o anseio de conhecer melhor a história de seus antepassados, soterrada por séculos de massacres e dominação cultural. O povo Borum-Kren é descendente dos Botocudos que, segundo a pesquisadora, foram perseguidos e assassinados, para abrir caminho para a exploração do ouro. 

Os que restaram, ainda de acordo com a pesquisadora, sofreram diversas formas de assimilação cultural violenta.

“Os colonos que chegavam ganhavam o título da terra quando casavam com uma indígena, então isso desencadeou muitos sequestros de mulheres indígenas e muitos estupros. Houve também um comércio de crianças indígenas, para trabalhar nas carvoarias. Meu avô foi um trabalhador escravizado e o irmão dele foi uma dessas crianças sequestradas”, disse.

Sem acesso às próprias terras e enfrentando a miséria, a família de Bárbara se mudou para a capital, Belo Horizonte, em busca de melhores condições. Enquanto crescia, ela questionava sobre a história do seu povo, e o pai dizia que “todos já morreram”.

Hoje, ela sabe que isso é uma meia-verdade, e tem defendido que os Borum-Kren não somente resistiram à extinção alegada oficialmente, apesar de grande parte ter sido obrigada a deixar suas terras originárias, como a retomada dessas terras seria a melhor forma de restaurá-las após anos de exploração. 

“Na medida que a gente restaura o território, a gente também restaura a cultura. Da mesma forma, quando a gente restaura a cultura, a gente também restaura o território”, defende. 

Mas segundo Bárbara, uma condição primordial para que isso aconteça é o reconhecimento dos territórios usurpados das suas populações originárias e a demarcação.

“Ele [reconhecimento dos territórios] garante que você possa fazer esse trabalho que leva à recuperação ambiental, porque a partir do momento que você tem garantida por lei o usufruto da terra pelo povo indígena, é que a gente pode desenvolver ações. E muitas vezes essas terras estão em uma área de amortecimento, na divisa com parques naturais. Então, com a demarcação, a gente acaba criando um corredor ecológico e ampliando essas áreas protegidas”. 

Bárbara tem se articulado com outros jovens Borum-Kren remanescentes e também integra o Movimento Plurinacional Wayrakuna, o primeiro grupo de pesquisa do Brasil composto por mulheres indígenas. Wayrakuna significa “filhas do vento”.

“É uma necessidade muito forte que a minha geração sentiu de mudar esses destinos de morte, que eram como uma predestinação. A gente quer mostrar que não é bem assim, que a gente pode fazer diferente, pode fazer algo efetivo em prol da ressurgência”, conclui.