As fotos da posse, com governadores e vices unidos para quatro anos de mandato, já amarelaram em ao menos 11 Estados, onde a aliança vencedora nas urnas está rachada ou no mínimo estremecida. A pandemia do novo coronavírus, somada a posições opostas nas eleições municipais do ano passado, provocou rompimentos públicos, ameaças de impeachment e disputas internas por poder.

Em Santa Catarina, a vice Daniela Reinehr (sem partido) anunciou o “fim da dupla” por meio de uma carta de cinco páginas enviada ao governador Carlos Moisés (PSL) e tornada pública. “Vossa Excelência desfez a chapa tão logo sentiu-se eleito, colocando-se como único representante à frente do governo estadual”, alegou no texto de junho de 2020.

Desde então, Daniela já assumiu a gestão em duas oportunidades, após denúncias afastarem Moisés do cargo temporariamente. “Advogada, cristã, conservadora e patriota”, como ela mesmo se define nas redes, é também bolsonarista e possivelmente candidata a assumir o cargo em definitivo nas eleições do ano que vem.

Mesmo sem anúncio oficial, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), e seu vice, Carlos Almeida Filho (sem partido), estão hoje em lados opostos. Após notícias apontarem possível irregularidade na compra de respiradores para pacientes com covid-19, no auge da primeira onda, Filho declarou guerra a Lima e deixou o cargo de chefe da Casa Civil.

“Não me misturo com quem pratica o errado, e é por isso que rompi com o líder que deu as costas à população. Desde então, fui sucessivamente perseguido e ridicularizado, tendo minha equipe de apoio exonerada com o objetivo de constranger minhas boas ações e o meu legado”, disse o vice-governador em nota divulgada no fim de abril.

Ao Estadão, a gestão Lima classificou a relação com o vice como “inexistente desde maio de 2020, quando Filho abandonou não apenas o cargo para o qual foi eleito, como também a chefia da Casa Civil da qual era secretário”. Apesar da tentativa de se descolar das ações do governo, Filho foi denunciado juntamente com Lima por suposto desvio de recursos públicos na compra dos respiradores. O prejuízo teria sido superior a R$ 2 milhões.

No Estado vizinho, o vice-governador do Acre, Major Rocha (PSL), também faz as vezes de opositor à gestão Gladson Cameli (PP). Mas, neste caso, o motivo do rompimento, em meados de 2020, não foi a pandemia, mas uma disputa interna de poder. Aliados do vice e da irmã dele, a deputada federal Mara Rocha (PSDB), perderam espaço na máquina estadual.

Rocha tinha autonomia para comandar os órgãos de segurança do Estado, mas, após resultados mal avaliados, perdeu a autoridade sobre as forças e também a proximidade com Cameli. Passou de aliado a “fiscal” – no último ano, Rocha fez até denúncias aos órgãos de fiscalização.

O governador afirma que tentou impedir o afastamento. “Da minha parte, minha relação com Major Rocha é a melhor possível. Agora, quanto a dele, não posso dizer”, disse Cameli à reportagem. Criticado inclusive por aliados, Rocha tem rebatido as críticas e afirmado ser perseguido por assessores do governo. Ele não respondeu ao Estadão.

Professor de Ciência Política no Mackenzie, Rodrigo Prando ressaltou que alianças eleitorais nem sempre funcionam no dia a dia de um governo de quatro anos de validade. “Projetos pessoais, acordos locais e a atual polarização da política no cenário nacional interferem diretamente na relação entre o titular e seu vice. Usando um termo de Zygmunt Bauman (sociólogo polonês), a política é líquida, o que é apalavrado hoje não vale amanhã necessariamente.”

Polarização

Entre os eleitos em 2018, a chapa Antônio Denarium (PSL) e Frutuoso Lins (Rede), de Roraima, foi a que se desfez mais rápido. A relação entre o governador e o vice é apenas institucional desde agosto de 2019 e por motivos essencialmente partidários. Denarium, como esperado, apoia o governo Jair Bolsonaro e foi até homenageado por ele; Frutuoso, por sua vez, faz críticas duras especialmente sobre a ação federal ao longo da pandemia.

O vice, que já ameaçou renunciar ao posto, tem afirmado que o plano de governo aprovado nas urnas não tem sido respeitado. “É lamentável, mas nem sempre vamos agradar a todos”, disse Denarium, por meio de nota, à reportagem. Oficialmente, o governo diz que a relação é pacífica e que o governo segue cumprindo as promessas de campanha.

A influência da gestão Bolsonaro no Rio foi ainda mais clara. Alvo de ataques do presidente, o governador eleito, Wilson Witzel (PSC), sofreu impeachment por desvios na pandemia e também por ter perdido seu potencial político diante de uma Assembleia Legislativa totalmente avessa a seus planos políticos – que incluíam a disputa do Planalto em 2022.

Atuando como uma espécie de “testemunha”, o vice e atual governador, Cláudio Castro (PL), participou de todo o processo de forma habilidosa, apesar da pouca liderança pública e da completa ausência de popularidade. Castro conseguiu realinhar o Palácio Guanabara ao governo federal e ainda montar uma base parlamentar a ponto de Witzel não receber sequer um voto favorável em todas as etapas do processo de afastamento.

Exonerações e renúncias marcam rompimentos

Com a “união desfeita” nem todos os vice-governadores aceitaram permanecer no cargo. Além de Cláudio Castro, que foi “promovido” a governador, outros dois substitutos renunciaram. São eles: Luciano Barbosa (MDB), que deixou a gestão Renan Filho (MDB), em Alagoas, para disputar e vencer o comando da prefeitura de Arapiraca; e Lúcio Vale (PL), indicado pelo governador Helder Barbalho (MDB), do Pará, a ocupar uma cadeira no Tribunal de Contas dos Municípios do Estado (TCM).

O racha alagoano foi parar na Justiça Eleitoral, acionada depois que o grupo que controla o MDB em Alagoas, chefiado pelo senador Renan Calheiros, decidiu expulsar Barbosa do partido em plena campanha. O vice, no entanto, conseguiu autorização para participar da eleição e se tornou prefeito da segunda maior cidade do Estado, levando o partido a reconsiderar a decisão e recebê-lo de volta.

No Pará, o rompimento foi contornado com a posse de Vale como conselheiro do TCM em 23 de abril. Barbalho ficou sem vice, mas ganhou um aliado a mais no órgão que fiscaliza os gastos públicos no Estado. O momento foi bastante oportuno, já que ambos são investigados por desvios de verba na saúde. Eles negam irregularidades.

Já em Mato Grosso do Sul, a relação entre o governador Reinaldo Azambuja (PSDB) e o vice Murilo Zauith (DEM) é apenas formal depois que o tucano resolveu, em janeiro deste ano, exonerar Zauith do cargo de secretário estadual de Infraestrutura e,consequentemente, da presidência da Agesul, a agência estadual de gestão de empreendimentos.

O desgaste entre os antigos aliados teve início nas eleições municipais de 2020, quando governador e vice apoiaram candidatos opostos para a prefeitura de Dourados, segunda maior cidade do Estado. O escolhido por Zauith venceu, desgastando de vez a relação.

Com dois mandatos consecutivos, Azambuja não pode concorrer ao governo em 2022, mas trabalha para manter seu grupo no poder. Murilo Zauith, que não foi vice no primeiro mandato de Azambuja, chegou a ser apontado como o candidato natural, mas agora o seu substituto na secretaria, Eduardo Riedel, é o atual favorito.

Zauith está hospitalizado recuperando-se de sequelas da covid-19. Sua mulher, a empresária Cecília Zauith, negou qualquer afastamento. “Não houve rompimento com o governador. Depois que ele receber alta, ele poderá falar sobre isso com mais propriedade do que eu”, disse. O governador Azambuja afirmou o mesmo: que “não houve rompimento político e que, mesmo em tratamento de saúde, Murilo segue desempenhando o papel de vice”

Aliados, mas nem tanto

Em ao menos três Estados, governadores e vices mantêm a cordialidade e o discurso eleitoral em eventos públicos, mas, nos bastidores, a relação está estremecida. Minas é exemplo. Quando o vice-governador, Paulo Brant, anunciou sua desfiliação do Novo, em março de 2020, todos davam como certo o rompimento com o titular da chapa, Romeu Zema, e com direito a manifestações acaloradas – os dois discordaram de um porcentual de aumento para servidores.

Um ano e dois meses depois, reflexos dessa turbulência ainda persistem, mas a crise foi contornada. Brant se afastou de funções ligadas à articulação política do governo, concentrando sua atuação na área de desenvolvimento econômico. A troca acalmou os ânimos.

“O único fato que aconteceu foi que, em determinado momento, ele decidiu não continuar no partido por divergências com a direção”, disse Zema ao Estadão. “Nossa relação é a melhor possível.” Qualquer informação contrária, segundo o governador, vem de “comentários indevidos”, sem fundamentos e sem procedência.

“Relações entre governador e vice são potencialmente conflituosas, mas, no nosso caso, é uma relação irretocável, muito aberta e franca. A gente se tornou amigo”, retribuiu Paulo Brant, mas não sem se posicionar sobre alguns aspectos do governo. “Eu sou liberal, mas liberalismo não é um ‘não Estado’. Eu defendo uma participação inteligente, republicana. O Estado não tem que se alijar do processo”, disse Brant. Questionado se a proximidade do governador com o presidente Jair Bolsonaro seria outra razão de divergência, o vice afirmou que nunca tratou desse assunto. “Não é um líder que me inspira, mas nunca falamos sobre isso”, disse.

Na Paraíba e em Mato Grosso, notícias de afastamento entre aliados também são constantes. Em ambos os casos o motivo é a política local. A relação do governador Mauro Mendes (DEM) e do vice-governador Otaviano Pivetta (PDT), por exemplo, deu uma esfriada em setembro do ano passado, quando houve eleições suplementares para o Senado, para preenchimento da vaga deixada pela senadora Selma Arruda (Podemos), cassada pela Justiça. Pivetta tinha se apresentado como candidato, mas o governador decidiu apoiar Carlos Fávaro (PSD), o que levou o vice a desistir da candidatura em cima da hora. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.