01/02/2012 - 0:00
Praça Nove de Julho: local típico de Salta, ideal para degustar o queijo de cabra que derrete na boca
O extremo norte da Argentina, perto da fronteira com a Bolívia, é a parte do país vizinho menos conhecida pelos brasileiros. E olha que não são poucos os que se aventuram na terra de los hermanos. No ano passado, um milhão de brasileiros visitaram a Argentina. A maior parte desses turistas foi a Buenos Aires, bem longe de lugares como Cafayate, San Antonio de los Cobres, La Puna, Cachi, Campo Quijano, cidadelas da província de Salta, localizadas no sopé da Cordilheira dos Andes. Nas montanhas de Cafayate, por exemplo, a 1,7 mil metros de altitude estão os vinhos Torrontés, de uma variedade de uva branca que simboliza o país. Mas nada é mais típico em Salta, a capital da província fundada em 1582, do que sentar em uma mesa de bar da praça Nove de Julho para beber uma cerveja acompanhada de empanadas, de humitas – as pamonhas salgadas inventadas pelos índios – e de um queijo de cabra de sabor leve e com cheiro de leite fresco que derrete na boca.
“O queijo fresco está em toda a província. Difícil aqui é encontrar lugar que não tenha um criador de cabras” Ismael Ortega, dono da estância
O queijo é um típico produto fabricado por agricultores da região, como Ismael Ortega, dono da estância La Canaria. Para chegar até ela é preciso pegar o Camino San Agustin, na Ruta 21, e andar pouco mais de 15 quilômetros até Cerrillos, uma minúscula cidade de 20 mil habitantes, famosa por seu carnaval, pelas plantações de tabaco e por ser a sede de uma das unidades do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (Inta), o equivalente na Argentina à Embrapa. Todo o queijo produzido pela estância é despachado diariamente para os bares e mercados de Salta. “O queijo fresco está em toda a província de Salta”, diz Ortega. “Difícil é encontrar aqui algum lugar que não tenha pelo menos um criador de cabras.” Don Ismael, como é chamado por todos na região de Cerrillos, é o maior produtor de leite de cabra da província. Atualmente são 500 animais da raça anglonubiana, com cerca de 130 fêmeas produzindo leite. “Essa raça é boa para leite, mas gostaria mesmo de ter um rebanho de cabras da raça saanen, bem mais produtivas”, diz Ortega. Em 1996, o criador tentou importar animais saanen da Nova Zelândia, mas a compra não foi aprovada pelo Inta. “Até hoje eles não me disseram o motivo da proibição.”
O rebanho de Ortega está em uma região da Argentina que só recentemente começou a chamar a atenção das instituições de pesquisa, visando à valorização da produção local. Assim como acontece em todo o mundo, também na Argentina a criação de cabras está nas mãos de pequenos produtores. São 4,2 milhões de animais em 46,7 mil propriedades produzindo carne e leite, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), órgão do Ministério da Agricultura. Não é muito, se comparado a outros países – o Brasil, por exemplo, cria nove milhões de cabeças. Os argentinos têm apenas 0,5% do rebanho mundial de caprinos, estimado em 780 milhões de animais, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
No país não há dados oficiais sobre a produção de queijo de cabras, mas apenas estimativas. Segundo o Consorcio Regional de Experimentación Agricola (Crea), uma instituição que reúne produtores e indústria, cerca de 65 mil litros de leite são processados em laticínios, por mês, dos quais 50 mil litros se transformam em queijos semiartesanais e industriais, quase todos em tipos de franceses como Lusignan, Crottin, Camembert. Os outros 15 mil litros são elaborados de forma artesanal, basicamente queijo fresco ou semicurado. É esse queijo tradicional, produzido há décadas pelos criadores de cabras, que tem ganho importância nos últimos anos, embalados pela valorização de locais como Salta, Catamarca, Córdoba e Mendoza.
A estância La Canaria faz parte do grupo de propriedades argentinas que nasceu produzindo queijos. “É o que sabemos fazer. Nossa família chegou ao país em 1949, na região de Corrientes, na divisa com Brasil, Uruguai e Paraguai”, diz Ortega, hoje com 68 anos. Em busca de terras mais baratas, sua família foi para Salta, em 1955. Cinco anos depois, a estância foi comprada e batizada de La Canaria, uma homenagem às Ilhas Canárias, na Espanha, berço dos Ortega. “Nasci nessa ilha e fui criado com leite de cabra. Ainda sinto o perfume no ar”, diz o criador. As Canárias são famosas por seus queijos, como o Palmero de La Palma e o Majorero de Fuerteventura, este último elaborado com leite de cabras que há séculos estão na ilha, as majoreras, que produzem um leite gordo, com grande quantidade de proteína e de aroma particular em razão do pasto onde os animais são criados.
Mercado: os queijos com cerca de um quilo são vendidos por US$ 7,50 para os bares e restaurantes de Salta
Ortega tenta repetir na Argentina um pouco de sua história espanhola. Todos os dias, as cabras anglonubianas da estância La Canaria produzem entre 300 e 400 litros de leite. Elas ficam em pastos de alfafa no verão e no inverno o sorgo entra na dieta, junto com o farelo de milho. “É preciso se preparar”, diz. “Entre os meses de junho e agosto, a temperatura em Salta pode chegar a dez graus negativos.” A estância La Canaria tem 70 hectares, 60 próprios e 10 arrendados. Em 40 hectares, Ortega cultiva tabaco e produz nove toneladas de folhas por ano, vendidas para a indústria de cigarros e charutos. Dos 20 hectares restantes, a maior parte é para a produção de feno e também para o pastoreio dos animais durante o dia. “De noite, com frio ou calor, todos são levados aos galpões para que não se estressem.”
Para produzir o queijo de cabra Ortega construiu um pequeno laticínio na estância, próximo da sala de ordenha das cabras. A produção artesanal é muito simples. Após a ordenha, o leite é pasteurizado a 68 graus centígrados. Em seguida, são adicionados fermento, cálcio e o coalho, que são as enzimas ácidas que vão transformar a gordura e a proteína do leite em queijo. As peças, cada uma com cerca de um quilo, ficam por três semanas em uma câmara fria, entre sete e oito graus centígrados. “Após esse tempo, o queijo está pronto”, diz Ortega. Atualmente, a produção da estância La Canaria é de 40 quilos de queijo por dia. Cada quilo é vendido por US$ 7,50.
Além do queijo, a estância comercializa animais, em geral os machos. Eles servem para cruzar com as fêmeas sem raça que são criadas na província de Salta e que representam a maior parte do rebanho local. “Vendo com cinco meses de idade, por cerca de US$ 100 cada”, diz Ortega. A média de produção de leite de fêmeas comuns é de cerca de dois litros por dia. A das fêmeas da estância La Canaria é de três litros. “Assim, ajudo também os criadores da região”, diz Ortega.