01/04/2010 - 0:00
Frederico Favacho
Uma das mais importantes lutas do campo brasileiro corre atualmente nos corredores do Judiciário. Em 2005, o governo de Mato Grosso do Sul criou um decreto que praticamente inviabiliza a exportação de grãos para outros Estados, ao estabelecer que, para cada tonelada exportada, outra deveria ser vendida no mercado interno. O resultado é um brutal aumento de imposto à revelia do que determina a Lei Kandir, penalizando principalmente os produtores. Os desdobramentos deste assunto, você fica sabendo a seguir:
Dinheiro Rural – Há uma situação delicada envolvendo a legislação tributária em Mato Grosso do Sul. Qual é exatamente o problema em questão?
FREDERICO FAVACHO – O Estado de Mato Grosso do Sul, do governador André Puccinelli, à guisa de regulamentar um regime especial para as operações de exportações, editou o Decreto-Lei nº 11.803, em 2005 e com ele criou uma quantidade enorme de obrigações, ditas acessórias, para as empresas exportadoras. Isso por si só já seria uma aberração, na medida em que essas obrigações criam empecilhos e embaraços desnecessários e abusivos que desestimulam a exportação.
Rural – Que tipo de obrigações?
FAVACHO – Obrigações como apresentar certidões negativas de débitos em nome da empresa e de seus sócios com a Fazenda Nacional e com o Instituto Nacional do Seguro Social, bem como certidões negativas de débitos com o município onde se localiza a empresa, sede ou filial. Cópia da declaração de bens e renda dos sócios ou diretores da empresa, autenticada pela Receita Federal. Comprovante de residência desses sócios ou diretores e até comprovante de regularidade profissional do contador responsável, que deverá ser estabelecido no Estado de Mato Grosso do Sul.
Rural – Isso tudo para uma simples venda de grãos para outro Estado?
FAVACHO – Parece muita coisa? Ainda tem mais. É preciso comprovar que está estabelecido no Estado há mais de dois anos e que é proprietário ou possuidor de armazém instalado naquele Estado com capacidade mínima de dez mil toneladas, além de ter de oferecer uma garantia, como hipoteca ou fiança bancária, por exemplo. Em relação a essa garantia, inclusive, o decreto não estabelece nenhum critério nem fixa valor, apenas deixa ao arbítrio do secretário da Receita definir caso a caso.
Rural – Na prática, por que o sr. afirma que isso desestimula a exportação?
FAVACHO – Como as operações destinadas à exportação são isentas de tributação, segundo a Lei Kandir, é evidente que o Estado tem o legítimo interesse de verificar se a exportação de fato ocorreu e cobrar o ICMS sobre aquelas operações realizadas no mercado interno. Por isso o Estado estabelece regras para que os exportadores comprovem a regularidade das suas operações, o que poderia ser feito “a posteriori”. Agora, exigir, previamente, comprovação de regularidade fiscal, domicílio prévio no Estado e garantia é um exagero.
Rural – É como o corralito argentino?
FAVACHO – Não exatamente. O modelo argentino, teoricamente foi proposto pela presidente Cristina Kirschner como uma medida para evitar o desabastecimento interno. No caso de Mato Grosso do Sul não podemos falar em desabastecimento interno, pois a demanda de grãos para o esmagamento e produção de óleo vegetal e farelo está sendo atendida sem maiores problemas.
Rural – Logo…
FAVACHO – O que o decreto estadual pretende, na verdade, é, artificialmente, destinar à tributação 50% das operações com soja e milho produzidos em Mato Grosso do Sul. O que o governo desse Estado não vê é que isso traz consequências sérias, principalmente para o produtor.
Rural – As ações propostas contra essas medidas já foram julgadas?
FAVACHO – Já foram julgadas tanto pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul quanto pelo Superior Tribunal de Justiça. O resultado, por ora, tem sido mais favorável ao Estado por conta de um precedente mal interpretado da primeira turma do STJ, em que o Estado tem poder regulatório para estabelecer regras para fiscalizar as operações de exportação e, por isso, o Decreto no 11.803 seria legal.
Rural – Então, o mérito não foi analisado?
FAVACHO – Isso mesmo. O precedente não examinou o mérito do decreto, sua inconstitucionalidade, e esperamos que o Supremo Tribunal Federal o faça. Esse decreto fere vários princípios constitucionais como o da isonomia ou igualdade ao impor um regime especial diferenciado para os exportadores de soja e milho exclusivamente.
Rural – Se o quadro não se modificar a “moda” pode pegar?
FAVACHO – Esse é o maior risco. E mais: hoje a questão está posta em relação à soja e ao milho, mas nada impede que o Estado do Pará, baseado nesse precedente, amanhã mesmo aplique essa regra às commodities minerais, obrigando a Vale a oferecer à tributação parte da produção hoje exportada!
Rural – Na sua opinião, a Lei Kandir corre o risco de “cair”?
FAVACHO – Diante desse quadro, sim. Este é o risco. E, veja só, isso às vésperas do 15º aniversário de promulgação desta lei complementar que foi importantíssima para a mudança do perfil da balança de pagamentos. É bom lembrar que com a Lei Kandir nossas exportações multiplicaram-se exponencialmente. E mais, é importante ainda lembrar que hoje quem garante o superávit na balança de pagamentos é a exportação de commodities agrícolas.
Rural – Já há outros Estados seguindo o exemplo de Mato Grosso do Sul?
FAVACHO – Da mesma forma que aquele Estado, não. Mas, como já disse, será uma questão de tempo.
Rural – Isso pode alterar as forças de oferta e demanda?
FAVACHO – Se a soja for realmente destinada para o mercado interno, pode gerar excesso de oferta e baixa dos preços internos. Por outro lado, se ela continuar sendo exportada, o imposto acabará fazendo parte do custo. Mas, sendo uma commodity, a soja tem seu preço fixado internacionalmente na Bolsa de Chicago e por isso o incremento do custo não tem como ser repassado ao comprador estrangeiro. Mas, em uma conta invertida, acaba caindo no colo, por assim dizer, do produtor. Ou seja, de uma forma ou de outra é o produtor que acaba sentindo os reflexos do Decreto no11.803.
Rural – Mas não é possível imaginar um incremento das exportações de soja e de farelo, compensando esses feitos mencionados pelo sr.?
FAVACHO – O problema é que toda essa confusão faz ser mais interessante exportar os grãos in natura para a Argentina e esmagá-los por lá, de onde serão exportados. Como consequência, a capacidade de esmagamento instalada na Argentina é muitas vezes superior à capacidade instalada no Brasil, comparando-se tanto os valores totais e gerais quanto planta a planta das empresas com instalações nos dois países.
Rural – Está em discussão a Pec 233/08, que trata da reforma tributária. Isso poderia atender às necessidades do campo?
FAVACHO – No campo, de forma geral, há interesses muito heterogêneos e até contrários se imaginarmos desde a produção antes da porteira, passando pela fazenda e chegando à agroindústria. Mesmo assim, há alguns pontos que serão combatidos por todos os envolvidos, como o excesso de burocracia, ou seja, as tais obrigações acessórias, e o problema dos créditos acumulados de ICMS. Mesmo que esse imposto seja substituído pelo IVA, nesses dois pontos a Pec não resolve os problemas.
Rural – Mas há desigualdades na cobrança do ICMS, por exemplo?
FAVACHO – Como diz o ditado popular “o diabo está nos detalhes”. Uma empresa exportadora que acumule créditos de ICMS nas exportações, se não tiver operações internas, não terá como aproveitá-los, e mesmo que os tenha, dependendo do Estado, não poderá usá-los por conta da guerra fiscal entre os Estados.
Rural – E há também as regulamentações regionais…
FAVACHO – Esse é o problema. Cada Estado tem seu regulamento, suas regras e obrigações acessórias. São documentos próprios, planilhas próprias, informações extras e de diferentes formatos que obrigam as empresas a manter pessoas apenas para cuidar dessas obrigações.
Rural – Mas o Mato Grosso resolveu esse assunto, não?
FAVACHO – Sem dúvida, e vale a pena falar a respeito. O governo Blairo Maggi estabeleceu uma série de obrigações para as empresas que compram produtos agrícolas em Mato Grosso. São diferentes planilhas com uma extensa relação de informações. O objetivo claro do Estado era rastrear as operações com soja do produtor até a saída para exportação e inibir ou coibir a evasão fiscal. O fato é que a burocracia era grande demais. Mas após algumas conversas chegou-se a um acordo que atendeu a todos os interesses e esse, sem dúvida, é um bom exemplo a ser seguido.
Rural – O sr. defende a tese de que a soja verde deveria possuir uma tributação diferenciada. Por quê?
FAVACHO – A soja, quando adquirida do produtor, geralmente está com um grau de umidade grande, acima do padrão de comercialização internacional. Por essa razão os grãos são submetidos ao processo de secagem, natural ou em silagem. Quando o grão perde umidade, consequentemente perde peso. E isso gera uma situação complicada porque, na hora de provar a exportação, haverá, em toneladas, uma diferença entre a soja adquirida e a soja exportada. O Fisco entende essa diferença, como soja destinada ao mercado interno, muito embora se trate de água que virou vapor d’água.